No contexto dos inúmeros debates a propósito do crescimento do Chega e dos potenciais perigos por ele representados, tornou-se comum olhar para este partido como uma força política desprovida de uma ideologia coerente e de um projeto sólido. Efetivamente, as inúmeras reviravoltas do líder André Ventura e as suas declarações contraditórias a propósito de alguns temas parecem confirmar a ideia de que este se trata de um projeto político de pouca densidade ideológica, baseado no oportunismo e na pura busca pelo poder.
Não obstante, e embora reconhecendo que possa haver no Chega um maior oportunismo e propensão para a mentira do que na maioria dos partidos, não deixa de ser importante apontar aqueles que são os princípios básicos da sua ideologia, princípios esses que estarão no cerne deste projeto político, e estarão sempre presentes de uma maneira, ou de outra, mesmo que possam dar origem a programas pouco estruturados ou mesmo incoerentes. Só tendo uma ideia mais clara de tais princípios será possível avaliar se, e em que medida, este partido se revela um perigo para a democracia liberal.
Assim, nos parágrafos seguintes, apresentarei um resumo do capítulo dedicado ao Chega no meu livro Os Perigos da Direita Radical, e que apresentará os princípios fundamentais da ideologia de Ventura e seus colegas, com base no programa político de 2021, e discursos e declarações públicas das figuras de liderança do partido.
O primeiro desses princípios é o nacionalismo, uma vez que, no seu programa, o partido diz pretender “resgatar o valor identitário, histórico e civilizacional do sentimento nacional” [1]. Desta forma, o conceito de nacionalismo é central para o Chega e estará sempre presente, de uma maneira, ou de outra, nas suas propostas, e é por isso que Ventura menciona que “somos os herdeiros daqueles que antes de nós morreram e lutaram por este país” [2]. É também por essa razão que Pedro Frazão refere que “somos nós que defendemos Portugal até às suas raízes” [3].
Contudo, à semelhança de outros partidos de direita radical contemporâneos, o partido de Ventura não se foca num nacionalismo explicitamente étnico, mas antes na “identidade cultural”. Assim, preservar a cultura portuguesa, que alegadamente se encontraria em perigo, é uma das bandeiras do partido, que coloca um especial foco em questões como o respeito pela bandeira, o hino, a língua portuguesa e as tradições nacionais. É por esta razão que Ventura menciona que “somos todos o produto do que escreveu Camões, Fernando Pessoa, o Padre António Vieira” [4]. De resto, a oposição à imigração (tema que esteve presente no programa, mas só agora se tornou central) é parcialmente justificada com o perigo que esta alegadamente representa para a preservação da cultura portuguesa, aparentemente correndo o risco de a “descaraterizar”. Não obstante, quando alguns membros do partido se opõem à “islamização” (ainda que com uma linguagem aparentemente menos extremista de que outros partidos seus congéneres, e dizendo não querer terminar por completo com a imigração), torna-se mais evidente uma lógica de discriminação étnica, mesmo que não assumida.
Ainda no contexto do nacionalismo, torna-se evidente um certo euroceticismo, explícito, por exemplo, em diversos discursos de Pacheco de Amorim e alguns documentos programáticos, ainda que, de uma forma geral, esta componente seja menos saliente no Chega do que noutros partidos seus congéneres, e o objetivo pareça ser o de defender a existência de uma União Europeia em que a soberania das nações seja mantida, ao invés de uma saída e extinção da mesma. Por último, a preservação da identidade nacional está também associada a uma valorização do mundo rural e do seu estilo de vida, que Ventura e seus colegas dizem querer defender.
De seguida, importa referir o princípio da autoridade, uma vez que o partido vê como fundamental a manutenção da lei e da ordem, bem como do respeito pela hierarquia na sociedade. É neste âmbito que o Chega diz valorizar e pretender reforçar o papel das forças da autoridade e da família tradicional, que deve ser liderada pela figura paternal, e que é descrita no programa como “a célula base que garante a preservação, a renovação e a socialização da ordem moral e da cultura cívica”. Além disso, o partido promove neste contexto uma agenda securitária, aparentemente focada no combate ao crime e no endurecimento do sistema de justiça (o que explica o foco inicial da proposta da prisão perpétua, e, mais recentemente, em propostas para o combate à corrupção que colocam em causa o Estado de Direito).
Ademais, o partido de Ventura olha com especial suspeição para movimentos progressistas que vê como disruptivos da ordem moral tradicional, incluindo movimentos feministas e LGBT (aos quais chama marxismo cultura, ideología de género ou ideologia ‘woke’), ao mesmo tempo que pretende preservar a importância da religião na sociedade. Por esta razão, Ventura tem vindo a referir que “nunca deixarei de falar de Deus, doa a quem doer”. Um último ponto no âmbito do autoritarismo diz respeito à associação com os valores do antigo regime ditatorial de Salazar, cujo legado o partido oficialmente não defende (ao contrário de outros partidos mais extremistas e sem representação parlamentar), mas cujas ideias basilares se encontram explícitas em lemas como “Deus, Pátria, Família, e Trabalho”, usado por Ventura (quase se poderia dizer que o Chega não é um partido salazarista, mas é ‘salazarento’, na medida em que defende os valores conservadores associados ao antigo regime, sem ir ao ponto de apoiar explicitamente a sua forma de organização política).
Não menos importante é o populismo, terceira e última componente da ideologia do Chega, e que remete para a ideia de que o partido representa um povo puro (os portugueses comuns), que se encontra em oposição às elites corruptas, que alegadamente o oprimem, e lhe impedem de fazer ouvir a sua voz. É neste ponto que é importante referir a retórica antissistema, e o combate à corrupção, vista como uma cruzada moral contra um regime pérfido, já que o Chega, nas palavras de Marta Trindade, “é a única esperança para combater o sistema e a corrupção, que em 47 anos destruíram a nossa pátria” [5] (note-se que esta autoimagem de justiceiros puros anticorrupção não impede que, na prática, o partido se envolva nas mesmas atividades de que acusa o sistema de perpetuar). Esta componente, comum noutros partidos semelhantes, traduz-se também num populismo produtivista, associado à ideia do trabalho e do cidadão trabalhador como elementos centrais para identificar quem pertence à categoria de português de bem, e quem está excluído dela, isto é, aqueles que não trabalham, e que alegadamente sobrevivem à custa do estado. Esta ideia, defendida no programa através da valorização do princípio da autorresponsabilidade, por oposição ao princípio da vitimização (discurso caro a Gabriel Mithá Ribeiro), remete para um combate à pretensa subsidiodependência, problema que alegadamente é necessário combater para permitir que Portugal cresça. É com esta lógica de anti-subsidiodependência que, muitas vezes, o partido critica a comunidade cigana, alegando não o fazer por razões racistas. De igual modo, o discurso antissistema, que apela a uma limpeza de Portugal, assume conotações antirregime, mesmo que o partido, na maior parte das vezes, não se afirme como contrário ao 25 de abril (distinguindo-se de outros partidos mais extremistas, que denunciam os traidores de abril). Esta ambiguidade no que toca ao legado da Revolução dos Cravos, e ao regime que dela saiu, está presente no discurso de Ventura quando este refere que “se isto é abril, nós não queríamos este abril, e preferíamos outro”.
Por último, devemos apenas referir que este apanhado geral das ideias do partido não invalida que alguns militantes possam defender ideias de matizes ligeiramente diferentes, ou com algumas especificidades que os limites de espaço nos impedem de resumir. Ainda assim, devemos apenas referir dois pontos relevantes. Primeiramente, no que toca às questões económicas, estas não são, para os partidos da família política do Chega, um elemento definidor, podendo variar desde a defesa do neoliberalismo completo, até ao intervencionismo estatal e a defesa de um estado social só para nativos. No caso do partido de Ventura, são as ideias liberais que têm a primazia, encontrando-se estas explícitas no seu programa através das referências ao princípio da autorresponsabilidade e à necessidade de reduzir o peso do Estado na sociedade. De igual modo, é dito no programa que “o Chega favorece o mercado e a iniciativa privada sobre o Estado e a iniciativa pública”. As mais recentes medidas, que incluem um maior intervencionismo estatal, não impedem que o partido continue a enquadrar-se no liberalismo económico, mesmo que já não de forma tão pura (e, de resto, estão em sintonia com a maioria dos partidos da sua família política, que defendem um meio termo entre o intervencionismo e o ultraliberalismo). Em segundo lugar, apesar das suas componentes ultraconservadoras, alguns partidos da direita radical podem reformular parcialmente o seu discurso, e dizer defender os direitos de grupos que não fazem parte do seu eleitorado tradicional, como os movimentos LGBT ou as mulheres, inserindo-os no âmbito de uma ideologia nacionalista, e, por vezes, no combate à “islamização”. No caso específico do Chega isso torna-se mais evidente com o discurso acerca dos direitos das mulheres, pois, mesmo que muitos membros do partido tenham discursos misóginos, algumas figuras como a deputada Rita Matias dizem querer defender as mulheres com uma lógica diferente da esquerda, denunciando crimes como os da violência doméstica, ao mesmo tempo que se afirmam como antifeministas.
Carlos Martins
[1] O programa do Chega encontra-se em: https://partidochega.pt/index.php/programa_politico/
[2] Ver https://www.youtube.com/watch?v=9r8OBcJh3JE&t=34s
[3] Ver https://www.youtube.com/watch?v=Mm7BI94OqvA
[4] Ver https://www.youtube.com/watch?v=9r8OBcJh3JE&t=34s
[5] Ver https://www.youtube.com/watch?v=9r8OBcJh3JE&t=34s
Desenho de capa por George Wesley Bellows
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