Entrou em vigor o tão apregoado “Programa Mais Habitação”, aprovado pela Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro. Numa altura em que a habitação está em crise a olhos nus, o Governo tomou a iniciativa de avançar com um programa que promete “Mais”. A ver vamos.
O pacote legislativo, à semelhança do que vem, aliás, sendo hábito, não ficou isento de polémica, nem tão pouco foi alvo de concordância parlamentar. Inicialmente apresentado pelo Governo a 16 de fevereiro de 2023, o “Programa Mais Habitação” foi agora aprovado apenas com os votos favoráveis do PS, tendo sido rejeitado por toda a oposição (PSD, IL, Chega, PCP e BE) e contado com a abstenção do PAN e do Livre.
Embora seja por demais evidente que a habitação é atualmente um problema que precisa de soluções prementes, a verdade é que nem aqui os partidos conseguiram unir esforços. Diga-se, aliás, que a proposta do Governo contava já com o veto do Presidente da República, que, em agosto, criticou a ausência de consenso partidário sobre o tópico. Porém, o Governo prosseguiu com a sua iniciativa e a oposição manteve a sua postura, deixando claro para o cidadão português que os seus representantes não conseguem sentar-se à mesa para concordar sobre direitos fundamentais, vencendo a falta de equilíbrio parlamentar.
Perante isto, cumpre notar algumas das alterações trazidas por este pacote que, como o próprio indica, tem “o objetivo de garantir mais habitação”.
APOIO À PROMOÇÃO DE HABITAÇÃO PARA ARRENDAMENTO ACESSÍVEL
Este apoio concretiza-se, por um lado, numa linha de financiamento e, por outro, na cedência de terrenos e edifícios públicos, ao qual poderão aceder determinadas pessoas coletivas públicas e privadas.
Ora a linha de financiamento (em sentido estrito) destina-se a projetos de construção ou reabilitação, incluindo a aquisição de imóveis para esse efeito, e posterior arrendamento. Por sua vez, a cedência de terrenos e edifícios públicos significa, precisamente, que o Governo identificará o património imobiliário público para cedência do direito de superfície e disponibilização para arrendamento acessível.
Sem prejuízo da boa vontade, esta medida carece, porém, de regulamentação dos seus termos e condições por Portaria do membro do Governo responsável pela habitação – a qual se aguarda.
ARRENDAMENTO FORÇADO
É ainda criada uma medida epigrafada precisamente como “arrendamento forçado de habitações devolutas”, que estabelece o arrendamento forçado de frações autónomas e de partes de prédios urbanos suscetíveis de utilização independente de uso habitacional classificadas como devolutas (isto é, que se encontrem desocupadas) há mais de dois anos.
De forma a executar esta medida, o Programa prevê que, com a colaboração dos municípios, seja remetida ao proprietário notificação para executar as obras de conservação necessárias ou para dar uso à fração (designadamente, mediante proposta para arrendamento). Caso o proprietário não atenda àquela comunicação, os municípios podem mesmo proceder ao arrendamento forçado do imóvel, ou, caso não o pretendam por si, comunicar ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU, I.P.), para este proceder nos mesmos termos.
SUSPENSÃO DOS NOVOS REGISTOS DE ALOJAMENTO LOCAL
O programa estabeleceu também a suspensão, em todo o território nacional, com exceção dos territórios do interior, da emissão de novos registos de estabelecimento de alojamento local nas modalidades de apartamentos e estabelecimentos de hospedagem em fração autónoma. Ademais, os alojamentos locais com registo em vigor serão também obrigados a efetuar prova da manutenção da atividade de exploração, sob pena de cancelamento dos respetivos registos.
Ainda, de modo a limitar a proliferação de alojamentos locais, foi criada uma contribuição extraordinária (a CEAL). Pese embora ainda agora tenha nascido, conta já com críticas do ponto de vista constitucional, uma vez que, assentando na aplicação de uma presunção do rendimento auferido pelo sujeito passivo, viola o princípio da capacidade contributiva. Este presume que a tributação deve ser igual para quem possui os mesmos rendimentos, e diferente para quem possui rendimentos diferentes em nome da justiça fiscal.
FIM DOS VISTOS ‘GOLD’
Na mesma senda, é de salientar, ainda, a decisão de não admitir novos pedidos de autorização de residência em Portugal para atividade de investimento (comumente conhecidos como “vistos gold”).
Se, na data da sua criação (há pouco mais de dez anos), se considerava que os Vistos ‘Gold’ seriam uma oportunidade de atrair investidores para o nosso pequeno retângulo – e tendo, na verdade, segundo dados oficiais, trazido cerca de 6 mil milhões de euros só no mercado imobiliário – a verdade é que o executivo decidiu colocar um fim expresso a esta política de abertura ao investimento direto estrangeiro.
ARRENDAMENTO
Com vista a proteger os inquilinos, o programa veio prever que a renda inicial dos novos contratos de arrendamento para fins habitacionais fica limitada, no caso de imóveis em relação aos quais tenham existido contratos de arrendamento celebrados nos cinco anos anteriores, ao valor da última renda praticada sobre esse imóvel aplicado o coeficiente de 1,02.
Por sua vez, também em matéria de arrendamento, o Governo ainda não se pronunciou – esperando-se que o faça até ao final do presente mês – sobre a atualização anual (para o próximo ano de 2024) das rendas dos contratos de arrendamento para fins habitacionais já em vigor. Ora, se no presente ano de 2023 assistimos à limitação do aumento das rendas a dois por cento, não acompanhando, assim, a subida da inflação e as normas legais sobre a matéria por forma a atenuar, precisamente, os efeitos daquela, a verdade é que, se para o próximo ano de 2024 nada for feito, prevê-se que os arrendatários sejam confrontados com um aumento das rendas na ordem dos 6,9 por cento.
Aqui chegados, por um lado, à esquerda reclamou-se e manifestou-se nas ruas – como de costume – por medidas “mais” vincadas, sem ser dado, no entanto, qualquer passo de concordância com o avanço proposto. Por outro, à direita acusou-se – também como de costume – o Governo de atacar a propriedade privada e de prejudicar os investidores.
Em boa verdade, o caminho ainda é longo e a urgência era ontem, continuando a ser uma miragem o artigo 65.º da nossa Constituição da República Portuguesa que expressamente prevê que “[t]odos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. A ver vamos.
Pintura de capa por Vincent Van Gogh
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