Na minha área, à semelhança do que acontece em muitas outras, os profissionais devem realizar dois estágios para poderem exercer atividade: o estágio académico e o estágio profissional. Acontece que, não raras vezes, estes estágios, em vez de momentos de aprendizagem e de desenvolvimento, são verdadeiros locais de exploração e abuso de poder.
Tenho colegas que pagam para trabalhar. Colegas que realizam o seu mestrado em universidades privadas, pois, feitas as contas, ficaria mais caro terem de se deslocar e assumir uma renda para estudar numa pública, a pagar 300 ou 400 de propina todos os meses. Sem qualquer tipo de apoio para realizarem os seus estágios académicos, como um subsídio de deslocação ou de alimentação, a fazer mais horas do que aquelas que estão estabelecidas e a trazer trabalho para casa. Efetivamente parece que a educação é só para alguns: aqueles cujas famílias têm dinheiro. Pois os outros não conseguem suportar tamanhas despesas, mesmo que trabalhem em part-time.
Repito: tenho colegas que pagam para trabalhar. Há entidades em Portugal que oferecem 50 €/mês a um estagiário com um mestrado, apesar de, supostamente, isto ser ilegal em muitos casos. Sim, leram bem. 50 euros por mês, não ao dia ou à semana (o que, mesmo assim, não seria um valor claramente justo). Diga-se que esta quantia não chega, em muitos casos, a cobrir o valor despendido nas deslocações casa-trabalho. E há pessoas que “aceitam” estas condições ridículas, muitas por desespero e por medo de não arranjarem melhor.
Atenção, quero deixar bem claro que sou totalmente a favor dos estágios. Só não concordo com a forma como algumas, talvez muitas (mas não todas!), empresas se aproveitam dos seus estagiários, tal e qual escravos dos tempos modernos. E ironicamente, parecem ser precisamente aquelas entidades que dependem de voluntários e estagiários para poderem funcionar – tal é a incompetência da sua gestão. Um estagiário já está a contar com duas grandes funções, independentemente do seu trabalho: ser secretário e ser assistente pessoal do seu supervisor ou orientador. E isto não é okay. Porque não estamos ali para aprender a tirar fotocópias; queremos meter a mão na massa daquela que foi a nossa área de eleição. Mas estamos em desvantagem, numa situação de vulnerabilidade, porque aquela nota ou aprovação pode colocar em causa o nosso futuro profissional. Por isso, muitas vezes, acabamos por sofrer em silêncio – mas não tem que ser assim!
Diga-se de passagem que isto só acontece porque nós, como sociedade, assim o permitimos. No outro dia a minha psicóloga, em jeito de provocação, questionou-me: “Inês, porque entra o cão na igreja?”; a resposta: “Porque pode”. É exatamente a mesma coisa. Se estas entidades conseguem ir sobrevivendo com estagiários mal pagos, se mesmo assim o trabalho aparece feito, por que motivo haveriam de lhes pagar mais? Não há motivação para o fazerem. Por isso temos de ser nós a exigir mais, a não compactuar com esta situação e a dizer claramente: “por esse valor, não aceito”. Se todos, sem exceção, o fizermos, as empresas vão ser obrigadas a mudar alguma coisa.
Quando aceitamos menos do que aquilo que merecemos estamos a enviar uma mensagem muito clara: eu contento-me com isto porque acho que não consigo mais e melhor. E isso não é verdade na grande maioria dos casos. Somos a geração mais formada de sempre. A grande maioria dos jovens estuda e trabalha ao mesmo tempo, está envolvido em “n” projetos académicos, desde associações de estudantes, a juniores empresas, a programas de mentoria e investigação, etc. Temos currículos super interessantes e competitivos. Mas também temos muito medo e insegurança, por isso escolhemos a passividade e contentamo-nos, frequentemente, com demasiado pouco.
Com este texto pretendo duas coisas: que aqueles que eventualmente trabalhem nestes locais de estágio reflitam duas vezes sobre o seu papel neste tipo de dinâmicas abusadoras e que roçam o assédio laboral; e que os meus colegas e futuros profissionais exijam melhores condições de trabalho, porque respeito, dignidade e um salário justo não é pedir demasiado – é o mínimo.
P.S. Todas estas questões são temas com os quais eu própria me batalho no meu dia-a-dia. E que têm sido muito abordados e trabalhados em psicoterapia, pois desta forma seria difícil evoluir positivamente, no sentido de desenvolver a minha autoconfiança e assertividade.
Inês Fonseca
Pintura de capa por Jean-Baptiste Debret
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