Ao contrário do que se calhar qualquer cidadão decente gostaria de pensar, a violência doméstica é ainda uma realidade demasiado presente em Portugal. E as estatísticas não têm vindo a diminuir assim tanto ao longo dos últimos anos – pelo contrário, de 2021 para 2022 houve um aumento significativo de novos casos. Este é ainda o crime mais reportado a nível nacional, ascendendo à categoria de “problema de saúde pública”. Em 2022 a PSP e a GNR registaram um total de 30.389 denúncias e só no primeiro trimestre de 2023 já foram assassinadas 3 mulheres. Desengane-se quem acha que o género das pessoas não é para aqui chamado: os números não mentem e a discrepância é ainda demasiado acentuada para ser desvalorizada. O estereótipo de vítima é, de facto, aquilo que observei em contexto real: mulheres abusadas pelos seus maridos, que as prometeram amar e proteger.
Como estagiária de um núcleo de atendimento a vítimas, vivi as frustrações desta população, que se sente muitas vezes abandonada pelo “sistema”. A justiça é lenta e dolorosa, o acompanhamento é demasiado espaçado no tempo porque não há recursos suficientes, os técnicos estão completamente atulhados de trabalho e em burnout, a burocracia é uma dor de cabeça, os encaminhamentos são constantes e a “empurroterapia” é a norma e não a exceção.
Neste contexto, como jovem inexperiente e ingénua, senti-me muitas vezes inútil e revoltada com esta realidade, a tentar fazer o melhor que podia com o pouco que tinha. Pode-se dizer que não sabia bem onde me estava a meter. Queria muito trabalhar com mulheres e/ou populações vulneráveis, e sinto que tenho alguma vocação para isso, mas não fazia ideia de que os casos eram tantos e tão graves, ainda nos dias de hoje. Ninguém me preparou para tanto choro, raiva e desesperança. Acho que, feliz ou infelizmente, nunca estamos prontos para algo assim quando não o vivenciamos na nossa própria pele, por mais sensíveis e empáticos que possamos ser (e eu tento muito).
Preocupa-me que nas redes sociais e nos media, todos os dias, veja relações completamente disfuncionais, tóxicas, e abusivas a serem romantizadas e normalizadas. Como se os ciúmes e a posse ainda fossem sinal de amor, como nos tempos da minha avó. Como se práticas sexuais violentas fossem “fixes” e “modernas” e tivéssemos todos de gostar das mesmas coisas – porque senão somos uma seca, pra não dizer outra coisa. Como se a violência psicológica e emocional – a manipulação, os insultos, a humilhação – não fossem motivos mais do que suficientes para terminar um casamento. Como se crianças que vivem num lar onde todos os dias há discussões acesas fossem mais felizes do que aquelas que têm pais separados. E como se o isolamento social e a fusão do casal se refletissem em relações mais bem sucedidas. Por favor, caros leitores, estimem o tempo individual e o tempo para estar com os vossos amigos e familiares sem o vosso parceiro atrelado, como se fossem gémeos siameses. Não é bom para ninguém, muito menos para cada um de vocês e para a vossa relação, e não sou só eu que o digo, a minha opinião é baseada naquilo que observei em contexto prático e li na literatura científica.
Todos estes comportamentos são só e uma coisa: provas de crime. A violência doméstica é crime público e está tipificada no artigo 148 do nosso Código Penal.
E lembrem-se: nunca é “só” acabar o relacionamento ou sair de casa, que já por si, dado o panorama económico atual, não é nada fácil. Este tipo de discurso e pensamento revelam, pelo menos, duas coisas muito graves: ignorância e insensibilidade. Existem demasiadas variáveis e fatores e, portanto, esta decisão nunca é tomada de ânimo leve e deve ser muito bem ponderada e planeada. Cada caso é um caso (MESMO!) e as vítimas não precisam de mais julgamento e escrutínio das suas vidas, precisam, isso sim, de apoio e compreensão.
Quero terminar com uma mensagem positiva, para cortar o tom pessimista com que escrevi este texto. Há muitos profissionais, competentes e esforçados, a trabalhar todos os dias para a prevenção e o combate à violência, em todas as suas formas e manifestações. E por cada agressor, surgem todos os dias novas formas de intervenção para potenciar a mudança comportamental e uma reinserção eficaz na sociedade. As “vítimas” são cada vez mais “sobreviventes”, estão empoderadas e livres para seguir em frente com as suas vidas. E existem cada vez mais pessoas ativas e vocalmente contra a violência, expressando-se no dia-a-dia e não tolerando as atitudes abusivas daqueles que os rodeiam. Os cidadãos estão também mais atentos e sensibilizados para esta temática. A justiça faz um esforço para a não-revitimização. E os técnicos têm investido na sua capacitação, para intervir eficazmente com a população afetada por esta realidade, desde logo apoiando as vítimas.
E, assim, devagarinho, vamos evoluindo num bom sentido, mas há ainda muito que fazer. E todos nós podemos ter um papel ativo nesta mudança!
Merecemos viver um amor calmo e que nos traga paz. Merecemos sentir-nos seguros e apoiados. Todos sem exceção. Vamos exigir isso para nós e para todos aqueles que conhecemos. Não vamos tolerar violência, seja de que tipo for. Este é o meu apelo e desejo mais sincero com este artigo.
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