Desde a sua entrada na política nacional em 2017, com uma entrevista controversa que o associou para sempre à questão das comunidades ciganas, a figura de André Ventura, juntamente com o partido que este criou oficialmente em 2019, o Chega, têm despertado os mais acirrados debates nos meios de comunicação, e não só.[1] Acima de tudo, para os opositores do partido, este último surge como o símbolo máximo de tudo o que eles repudiam e representa um indiscutível perigo para a democracia. Esta preocupação não é, de todo, despropositada. Observando a realidade internacional e prestando atenção aos países em que os partidos da família política do Chega (que, com base numa grande parte da ciência política podemos apelidar de “direita radical populista”) alcançaram o poder através de eleições, deparamo-nos com um cenário inquietante. Em países como a Hungria, atualmente liderada pelo Fidesz de Viktor Orbán (ou, embora com muitas diferenças, a Turquia de Erdogan), o partido de direita radical no poder encontrou meios de se perpetuar no poder, enfraquecer as instituições da democracia liberal e os seus checks and balances, controlar o poder judicial e os meios de comunicação, e reduzir ao mínimo a influência da oposição. Noutros países, onde não foi possível a perpetuação no poder, alguns líderes de direita radical conseguiram, ainda assim, ameaçar os habituais procedimentos democráticos, como foi o caso dos E.U.A. com Donald Trump e do Brasil com Jair Bolsonaro, nos quais tiveram lugar invasões de edifícios governamentais, quando os seus apoiantes não aceitaram a derrota nas eleições. Noutros casos ainda, como na Áustria, coligações mais ou menos breves entre a direita radical e a direita internacional, mesmo que insuficientes para que a primeira alcançasse verdadeiramente o poder, contribuíram, ainda assim, para normalizar e legitimar algumas das suas ideias. No geral, esta nova direita radical surge-nos como um fenómeno político que, apesar de não pretender destruir totalmente a democracia, pode enfraquecer as suas instituições se tiver oportunidade para isso e atentar contra os valores que tradicionalmente fazem parte das democracias liberais como as conhecemos.[2] Ademais, o conteúdo explicita ou implicitamente xenófobo da ideologia destes partidos, bem como a sua oposição a outros movimentos progressistas que muitos cidadãos atualmente vêm como essenciais numa sociedade democrática, representam um perigo adicional desta “direita radical populista”.
Levando em conta esta realidade, e assumindo que o Chega pode, de facto, representar uma ameaça para alguns princípios da nossa democracia, mesmo que apenas através de uma coligação semelhante à austríaca (cenário mais provável de se reproduzir em território nacional), é importante que nos perguntemos que atitudes devem tomar os outros partidos para lidar de forma eficaz com este partido (as possíveis atitudes da sociedade civil são também um assunto interessante, que não abordaremos aqui). De acordo com o especialista em direita radical Cas Mudde, são quatro as possíveis respostas a esta nova direita:[3]
– a demarcação, que consiste simplesmente em ignorar os partidos de direita radical e agir como se eles não existissem, não admitindo qualquer possibilidade de alianças ou de apropriação do seu discurso. Este “cordão sanitário”, como por vezes é chamado, é frequentemente associado à Bélgica e à sua ostracização do partido VB.
– o confronto, que se carateriza por uma oposição ativa aos partidos e às suas ideias e que, se excetuarmos os partidos mais de esquerda (que frequentemente se opõe fortemente à direita radical), muitas vezes é aplicada, não tanto com a “direita radical populista”, mas com partidos ainda mais violentos, extremistas e próximos do fascismo, como é o caso da Aurora Dourada grega.
– a cooptação, que é a estratégia mais vezes aplicada, e que consiste em excluir os partidos de direita radical, ao mesmo tempo que se opta pela apropriação de algumas duas suas ideias (muitas vezes, as que dizem respeito à imigração), mesmo que de forma um pouco mais “moderada”.
– a incorporação, que ocorre quando os partidos de direita radical são normalizados e aceites como atores políticos iguais a todos os outros, podendo, pois, concretizar-se coligações eleitorais ou de governo com eles. Um caso de incorporação aconteceu, por exemplo, na Suécia, onde, depois de largos anos em que a demarcação era a estratégia privilegiada, o partido SD passou a dar apoio parlamentar ao governo de centro-direita em 2022.
No caso português, não tem sido fácil descortinar a melhor forma de lidar com o Chega. Na dita “esquerda radical”, cuja ideologia é mais radicalmente oposta à do partido de Ventura, as atitudes podem variar entre a demarcação e o confronto (manifestando-se este último, por exemplo, através de manifestações de rua por parte de organizações antifascistas). No entanto, é a direita tradicional o principal actor que determinará a forma como o partido de direita radical se inserirá no sistema político do nosso país a longo prazo. Com as sondagens a dar consistentemente ao Chega um sólido terceiro lugar num eventual acto eleitoral, e com o principal partido de centro-direita, o PSD, a ver-se incapaz de governar sem o apoio de outras formações, será grande a tentação de estabelecer algum tipo de acordo com o partido de Ventura com o intuito de afastar do poder o PS, de centro-esquerda. Ainda assim, à direita, temos encontrado até agora exemplos de todos os tipos de atitudes, que incluem a demarcação e o confronto (por exemplo, num debate para as eleições presidenciais entre Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura), mas também a cooptação, que teve lugar, por exemplo, quando o Presidente da Câmara de Lisboa Carlos Moedas falou sobre o acolhimento de imigrantes em termos que, pelo menos para alguns observadores, revelavam uma aproximação ao discurso do Chega. O exemplo dos Açores, onde teve lugar um acordo entre o PSD e o Chega, surge também como um exemplo de incorporação, parecendo demonstrar que, no caso português, o “cordão sanitário” não é uma hipótese viável. No geral, sabendo que podem vir a precisar do partido de Ventura, os líderes da direita tradicional muitas vezes mostram-se evasivos quando questionados sobre a possibilidade de uma coligação, ou então dão respostas ligeiramente diferentes, dependendo da ocasião.
Ao escrever estas linhas, o autor está ciente de que lidar com a direita radical não é uma questão simples e que não existem respostas definitivas. Uma estratégia pode ser bem sucedida num dado contexto, ao passo que noutro, ligeiramente diferente, pode revelar-se um fracasso. De igual modo, é necessário repensar estratégias e mudá-las ao longo do tempo, consoante os resultados obtidos, e mesmo colocar em prática mais do que uma estratégia ao mesmo tempo, se tal for necessário. No entanto, no contexto atual, julgo que seria importante ter uma ideia clara dos planos de médio e longo prazo dos partidos de direita radical, pois isso esclareceria os eleitores. Na impossibilidade de se obter um esclarecimento preciso, a atitude da direita deveria caraterizar-se, se não pelo confronto, pelo menos pela demarcação (o que, claro, pode ter como contrapartida o crescimento do eleitorado do Chega, mas é o primeiro passo para garantir que as coligações não existirão). Já à esquerda, a atitude deve caraterizar-se, sempre que necessário, pelo confronto, mas sem que com isso a sua política se foque exclusivamente na oposição ao partido de Ventura (o que, de resto, poderia ser benéfico para este último). Ao invés, os partidos de esquerda devem apresentar um programa alternativo, capaz de atrair os ditos “descontentes” e os antigos abstencionistas (que formam uma parte importante do eleitorado do Chega), mas isso é matéria para outro texto.
[1] Para ler mais sobre André Ventura e o seu partido, ver Riccardo Marchi, A Nova Direita Anti-Sistémica: O Caso do Chega (Lisboa: 2020). O livro foi criticado por alegadamente ser demasiado favorável ao Chega, mas, ainda assim, é uma boa fonte de informação sobre a sua ideologia.
[2] Um caso que vale a pena seguir com alguma atenção é de Itália, atualmente governada pelo Fratelli d’Italia, de Georgia Meloni.
[3] Ver Cas Mudde, O Regresso da Ultradireita (Lisboa: 2019).
Carlos Martins
Imagem de capa: Duke of Winterfell, sobre licença Creative Commons
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