Roubei este termo de Fernando Pessoa, no Banqueiro Anarquista (1981):
"- É curioso não é?… E olhe que há pontos secundários também muito curiosos… Por exemplo: a tirania do auxílio… - A quê? - A tirania do auxílio. Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do mesmo modo ir contra os princípios anarquistas. - Essa é boa! Em quê? - Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é fazê-lo tal, ou supo-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. (…)"
Aqui está mais uma prova de que no meio está a virtude. No espectro de auxílio, temos num extremo a anarquia e no outro a tirania. Ajudar demais é tão ou mais devastador do que não ajudar. O exemplo mais falado atualmente é o da educação: devemos deixar as crianças caírem e baterem com a cabeça, literal e metaforicamente – existem vários exemplos de que a liberdade para bater com a cabeça é mais vantajosa do que o paradigma “redoma de vidro”, onde essa criança não pode nem respirar sem que esse ar esteja filtrado (i.e., uma clara hipérbole).
Mas como assim esta suposta tirania vai contra uma anarquia? Se virmos a definição de anarquia como a liberdade total, então parece-nos óbvio que ajudar alguém é, fundamentalmente, restringir essa pessoa. Restringimos o outro do sofrimento que adviria de lidar com uma tarefa sozinho. “Mas restringir o sofrimento não é uma coisa boa?” Gordon Allport, um dos pais da psicologia da personalidade, disse o seguinte sobre o sofrimento: “Viver é sofrer, sobreviver é encontrar algum significado no sofrimento.” Eu não poderia subscrever mais esta frase. Logicamente, se restringirmos o sofrimento, só estamos a adiar a batalha da busca pelo significado nesse mesmo sofrimento. E essa batalha tem de acontecer. A única escapatória é a morte inconsciente de quem acha que a vida são rosas. Isto quer dizer que, apesar do quão irónico possa parecer, que convém ajudarmos o outro a ter o máximo de sofrimento possível, de modo a encontrar o seu sentido na vida. Isto pode ter a forma de novos desafios de self-development, novos desafios laborais, relacionais, espirituais, etc. Não estou a dizer que não concordo com férias, mas se puder levar um livro complexo para me cultivar intelectualmente ao invés de entrar nos ciclos dopaminérgicos do Instagram, levarei. E escolher um livro ao invés do Instagram é sofrimento para muitas pessoas, acreditem.
Há cerca de uma semana, um amigo contou-me que um sem-abrigo lhe pediu um cigarro. O meu amigo respondeu-lhe “tranquilo, eu dou-te o cigarro, mas não podias ir trabalhar para o comprares tu?” (também não é coisa que se diga, se suposermos que todos os sem-abrigo tentam todos os dias arranjar um emprego…), ao que o sem-abrigo responde “Trabalhar?? Trabalha tu se quiseres, que eu estou bem assim”. Assumindo que esta situação foi pelo menos 90% verdadeira, e ignorando quaisquer possíveis psicopatologias e outras variáveis que nos impedem de atribuir responsabilidade a esta pessoa, diria-se que este sem-abrigo é uma vítima da tirania do auxílio. Mesmo a viver ao frio e a pedir comida para sobreviver, esta pessoa recusa um dos caminhos para o seu bem-estar – o trabalho. Talvez porque, como portugueses e maioritariamente cristãos, torna-se difícil recusar um pedido de misericórdia, mesmo que esse pedido seja para um cigarro. Este pedido, esta misericórdia, este auxílio, torna-se uma tirania. Este sem-abrigo seria capaz de trabalhar, mas para quê, se tem um povo inteiro de tiranos misericordiosos prontos a atender aos seus desejos?
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