Contextualização
Em 2020, Donald Trump referiu-se à COVID-19 como o “vírus chinês”. Agora, em 2023, o foco volta a estar sobre a origem deste vírus. Este é um texto de opinião no qual me tento colocar ao máximo na pele de um migrante chinês nos EUA, à mercê de declarações insensatas e sem qualquer diplomacia à mistura – apesar de objetivamente e legalmente não racistas – como Donald Trump nos habituou durante o seu mandato. Este migrante que tento personificar (que por puro acaso também adora psicologia) irá refletir sobre estas declarações e as suas consequências, com foco no conceito de Sistema Imunitário Comportamental.
Trump e a COVID-19
Entrarei agora em personagem… Um líder xenófobo contra um vírus xenófilo. O resultado? Passividade, descredibilização, ceticismo e uma atuação tardia, com várias manobras de diversão e desresponsabilização para mascarar a falta de coragem, liderança e preocupação da parte de Donald Trump perante o coronavírus. Este senhor, no seu estilo a que já nos habituou [coisa que nunca pensei escrever], referiu-se ao coronavírus como o “vírus chinês”, circa 2020. Isto resultou numa onda de comentários que acusaram o ex-presidente dos Estados Unidos de xenofobia, aos quais o mesmo responde que apenas está a mencionar a origem do vírus (e inclui uns comentários de culpabilização do governo chinês, os quais vamos tentar ignorar ao máximo).
O Sistema Imunitário Comportamental
Este conceito pode ser explicado analogamente ao nosso sistema imunitário (o biológico, aquele que todos conhecemos), funcionando de forma idêntica, apesar de que com um objetivo diferente. O nosso sistema imunitário serve para ações ativas de identificação e combate de agentes estrangeiros ao nosso corpo. Da mesma forma o nosso sistema imunitário comportamental evade e evita estímulos sensoriais potencialmente perigosos, funcionando como uma primeira linha de defesa, fundamentando o provérbio “mais vale prevenir que remediar”.
A China como alvo do Sistema Imunitário Comportamental
Apesar do enorme esforço para a globalização, a cultura chinesa mantém-se como das mais exóticas e intrigantes para os restantes países. Um dos seus traços mais desconcertantes é a alimentação, que alguns consideram iguarias excêntricas e outros um nojo tremendo. Dadas todas as narrativas sobre a COVID-19 ter tido como origem uma iguaria excêntrica (ou nojo tremendo, depende como preferirem adjetivar o ato de comer um morcego), a cultura alimentícia chinesa leva com holofotes indesejados. O caminho é lógico: se a) a COVID-19 levou a danos ao nível global e b) a provável origem da COVID-19 foi a cultura alimentícia chinesa, logo c) a cultura alimentícia chinesa levou a danos ao nível global. Apesar de lógico, quando usamos esta análise univariada (i.e., onde temos em conta apenas uma variável explicatória do resultado) na esfera pública, há que ter cautela e diplomacia na língua. Não me refiro à limitação da liberdade de expressão, mas sim à correta explicação de problemas complexos à população que se está a liderar. Conjuntamente, tendo em conta que esta declaração do “vírus chinês” por parte de Donald Trump veio num espaço temporal em que o próprio estava prestes a ser chacinado pela atuação tardia, digamos que desviar atenções para alguém que comeu um morcego é uma ótima estratégia. No entanto, esta estratégia é uma perfeita analogia ao Erro Fundamental de Atribuição da teoria de Weiner, onde nós (i.e., EUA) justificamos os comportamentos dos outros (i.e., China) baseado em fatores internos desses outros (i.e., cultura alimentícia), enquanto que justificamos os nossos comportamentos (i.e., atuação tardia para controlar a pandemia) baseado em fatores externos (i.e., culpa dos chineses). O nosso sistema imunitário comportamental, numa lógica evolutiva, fica do lado da precaução e generaliza os sintomas que podem ser considerados como pistas de possível infeção, de modo a garantir acima de tudo que o nosso corpo/sociedade/nação é protegido. Isto é uma das consequências do comportamento de Donald Trump, a xenofobia perante a raça asiática, que por serem do país onde a doença originou, se transformaram automaticamente em seres comedores de morcegos e, por sua vez, possíveis portadores da doença.
Perceção de vulnerabilidade
Tudo o que é diferente das regras da sociedade onde vivemos é visto como estranho, conforme o grau de desconhecimento do país em questão. Quanto mais desconhecido, diferente e estranho, mais comportamento de evitação existirá. Quanto maior o risco, maior as proteções que tomamos. Isto não se aplica na bolsa de valores, onde temos uma maior recompensa quanto maior risco tivermos. Mas na saúde aplica-se, e aqui, quanto maior a nossa perceção de vulnerabilidade (i.e., este tal conceito onde nos avaliamos perante o desconhecido), mais medidas tomamos para melhor nos protegermos. Um dos fatores desta perceção pode ser a distância ao epicentro da pandemia, e assim verificamos as diferentes ações entre países vizinhos como Macau e países distantes como a Itália. Isto aplica-se também à posição de Donald Trump – ao se ver encurralado pela opinião pública, tomou medidas de desvio de atenção. Na política é algo bastante comum. Quando estamos encurralados por lobos numa serra, normalmente temos 3 opções, os 3 F’s: fight – lutar contra os lobos; flight – fugir dos lobos; freeze – congelar e possivelmente passar despercebido. Na política, quando os primeiros 3 F’s não são exequíveis, existe uma 4.ª opção: culpar os outros (poderia ter escrito uma palavra começada por F, bem portuguesa, muito usada no Norte, de modo a ficarem os 4 F’s, mas, por ser o meu primeiro artigo de opinião, não quis arriscar). Assim o fez Donald Trump.
Como é que eu fico como migrante chinês?
Fico discriminado no país mais livre e coletivista do mundo (e ainda assim 300% melhor do que a chinesa). Fico segregado aos extremos que resultam desta liberdade coletivista – ou sou amado e protegido por ser chinês, ou sou odiado e atacado por ser chinês. Fico completamente dependente do grupo com que me deparo naquele dia. Se repararem, eu nunca mudei em nada. Nasci chinês e permaneço chinês. No entanto, o pensamento socrático de encontrar uma solução lógica para o problema continua a perder para o sofismo do “nós contra eles”. 100% do foco devia ter estado na melhor estratégia para lidar com a COVID-19 (que abordarei noutro artigo) mas, na verdade, dividimos o nosso tempo em 20% para culpar o inimigo, 20% para teorias de conspiração, 20% a ir comprar papel higiénico e apenas 40% a pensar na melhor estratégia para acabarmos com o vírus.
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