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Uma das forças e fragilidades da democracia é a decisão do padrão cultural maioritário, popular. “O povo é quem mais ordena” – então e quando o povo, a coletividade jurídica de um determinado estado ou país, ordena, dispõe ou determina erradamente? Claramente errado, contra os conquistados e débeis princípios democráticos, humanistas e civilizacionais?

Nunca existiu tanta escolaridade, processos culturais de formação e fruição, projetos comunitários locais, espaços de conhecimento, canais diversos de informação e abertura para interação com a pluralidade e diferença. Na contemporaneidade, nunca se criaram tantas perspetivas para o bem-estar individual e social, para a qualidade e longevidade da vida, para a possibilidade de deslocamento de um lugar para outro. 

Continua em processo, a ser melhorado e aprimorado, o acesso a serviços essenciais, como a justiça, a saúde e a educação. Quotidianamente, apesar de ainda se despender muitas horas para o trabalho e produtividade, nunca como agora se valorizou o tempo para o lazer, para a fruição e para a contemplação. 

Nestas circunstâncias históricas, naturalmente não isentas de entraves, desigualdades e défices, como é possível, perante frustrações, falhas ou contrariedades, tomar-se decisões populares levianas e até mesmo perigosas (devido aos seus antecedentes) em prol dos que reconstroem o mal, a ignorância, a dormência, a opressão ou o crime?! Nas dinâmicas atuais, enfrenta-se o perigo de relativizar tudo ou de ceder o benefício da dúvida a oportunistas casuais. 

Como é que se aceita que se eleja, que se escolha ou se trilhe um caminho para comportamentos humanos enviesados, subjugadores e que num passado recente mostraram ser a face vergonhosa da nossa espécie?! Como é possível a frustração abrir a porta ao obscurantismo já testado, porém disfarçado de futuro?!

Mesmo que o conceito de povo seja multifacetado, escorregadio e difícil de abarcar, a maioria dos residentes de um estado instituído podem e são estudados em diversas disciplinas numa matriz de caracterização. Nas nossas organizações e instituições fazem-se muitos percursos de aprendizagem escolar, académicos, profissionalizantes; entregam-se inúmeros diplomas ou currículos formais, mas incorpora-se menos em cada um deles a exigência, o nobre caráter, a autoconsciência e a sabedoria como essência do discernimento e aplicação ética. 

Fazem-se rankings das avaliações, que não traduzem as ações de dignidade, as escolhas diferenciadoras, a compaixão ou o melhor que a construção humana pode inspirar. Nas escolas, nas famílias, na comunicação social, nos planos de poder local ou empresarial – onde estamos a errar? Os índices investigados e divulgados de leitura social, como os da delinquência, violência, toxicodependência, infantilização cultural, e alheamento cívico estão a aumentar.

Não é comum ouvir-se alguém detentor de poder, um representante ou dirigente político, responsabilizar as populações, bem como o seu défice cultural, espiritual e cívico – normalmente ninguém quer essa tarefa porque não é simpática. Quando um ditador ou força política extremista ou fascista ganha as eleições, as opiniões que se propagam vão todas buscar causas e argumentos aos problemas comuns que persistem, à oposição ineficaz, ao que cristalizou e apodreceu no tempo. Poucos são os que declaram, que por mais que as circunstâncias sejam injustas, iniciáticas e difíceis, nada, mesmo nada, justifica que se elejam as faces malévolas entre os nossos. Até num desenho animado isso é básico: por mais que tudo se desenvolva numa narrativa complicada, a história não tem de acabar com o apogeu dos maus.

O povo não é inocente nem precisa de discursos condescendentes e paternalistas. Como imputar responsabilidade a um coletivo cultural, até mesmo algumas nações, pelas más decisões, escolhas ou retrocessos? Como fazê-lo a um corpo comum, supostamente informado e integralmente adulto, que reconfigura radicalmente em distopia e dinâmicas para a opressão e totalitarismo o espaço que habita e que implica os seus pares, as outras espécies e as estruturas ecológicas existentes? 

É viável em tribunais interestatais denunciar, processar, e criminalizar pessoas, organismos ou instituições. E contra os litígios de um povo ou de nações? Como se pode atribuir a culpa literal e judicialmente às insanidades de um grande número de cidadãos? É aceitar que a democracia permite aquilo que a destrói?

Há muitas vezes uma resistência individual e coletiva em emancipar-se, em superar-se e amadurecer na exigência. Há vários projetos locais educativos que tentam combater ou mitigar todo o tipo de défices formativos revelados nas comunidades, porém, e para quem tem experiência no terreno, há uma oposição e um descompromisso em relação a estas iniciativas, principalmente por aqueles e aquelas que mais necessitam delas. 

Todos/as querem direitos, serviços, privilégios e oportunidades, mas são bem menos aqueles/as que se disponibilizam à mudança, ao conhecimento mais profundo, e aos deveres cívicos. As redes sociais têm sido o espelho mais condenável da falta de senso, pudor e consciência com que a comunicação selvática, descontrolada e agressiva tomou o lugar dominante.

No passado, os estudos dos psicólogos sociais David Dunning e Justin Kruger, em 1999, deram origem ao designado Efeito Dunning-Kruger, que explica como tendencialmente as pessoas com menores habilidades, autoconsciência ou frágeis capacidades cognitivas são as que em determinadas circunstâncias se julgam mais à vontade para as sobrevalorizar, em detrimento dos/as outros/as que são efetivamente mais qualificados/as pelos/as especialistas. A ignorância confiante na ilusão de que sabe mais que o conhecimento! 

Aos agentes, aos combates e discursos políticos tradicionalmente instituídos pela esquerda e pela direita: não deixem, por favor, de refletir e debater sobre as problemáticas mais sensíveis da organização social e da natureza real do ser humano. Não deixem as questões fraturantes nas mãos levianas e obscuras dos extremistas, nacionalistas, reacionários e autoritários.

Perante a normalização do mal, da manipulação subtil, da discriminação, da massificação de gestos caóticos e destrutivos, precisamos, alguns de nós, com as réstias de sensibilidade, conhecimento científico e elevação espiritual, de não embrutecer. Não tenhamos receio de apontar as linhas vermelhas do desvio, do perverso, do padronizado, do medíocre, da mentira, do vil e de todos os seus sinónimos, que entram nas nossas casas, como fizeram no passado, com rostos inofensivos de liberdade.

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