Sinceramente, não compreendo como é possível que, como sociedade, tenhamos avançado mais rapidamente a respeito da legalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) e, no entanto, ainda estejamos à espera de ver regulamentada a lei da eutanásia, aprovada no Parlamento e promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa, em 2023. Não que seja contra a primeira, mas porque é muito mais fácil e menos polémico ser a favor da segunda.
Veja-se o absurdo: mediante prazos estabelecidos e condições previstas na lei, uma mulher pode – e bem, na minha opinião – solicitar a IVG medicamente assistida e não dar vida a um a ser, embrião ou feto, que nada pode dizer em sua defesa, mesmo que reúna todo o potencial para vir a ser um indivíduo saudável (quem sabe, feliz). Decide sobre um outro, um terceiro que, ainda que se desenvolva no seu corpo, é uma criança em potência, com toda a vida pela frente. Por outro lado, não damos a um doente terminal e em sofrimento permanente, lúcido e em consciência, jovem ou idoso, o direito de decidir interromper a sua própria vida. Vida que já não quer. Quando a ciência médica já não lhe pode oferecer qualquer expectativa de cura ou de um resto de vida feliz. Faz algum sentido? Obviamente, a questão reveste-se de uma complexidade muitíssimo maior, passando, desde logo, pela definição dos critérios de elegibilidade, pelo enquadramento do direito à objeção de consciência dos profissionais de saúde, etc., mas, como princípio geral, justapondo a IVG e a eutanásia, é um enorme contrassenso termos avançado com a primeira, em 2007, e, quase 20 anos depois, não termos em vigor a segunda.
Não chegámos a este absurdo apenas por força da religião, ou tão-pouco teríamos a IVG legalizada. Entretanto, a religião desempenhou no nosso país, sem dúvida, um papel muito relevante neste atraso civilizacional. Se as crenças de alguém, ou mesmo de uma maioria, são contrárias à eutanásia, estas não podem ser impostas a quem não partilha delas. Lei e religião não se podem contaminar. Ainda que esta última possa ser um elemento predominante da cultura de um povo, não representa a sua totalidade – e representa-nos cada vez menos, ao passo que cada vez mais morremos doentes e sem qualidade de vida. Como pode a Igreja justificar-se perante um ateu? Evangelize os seus fiéis! E quantos destes que, saudáveis e num debate onde só a filosofia pesa, assumem-se acerrimamente contra, não escolheriam a eutanásia diante de uma doença terminal, sem cura e com sofrimento prolongado – o seu e o dos seus familiares e cuidadores? Como tantas vezes, é uma questão de nos colocarmos no lugar do outro e também de percebermos que não acontece só aos outros.
A minha avó materna lutou durante cerca de 10 anos contra dois cancros. Além de todo o sofrimento provocado pela doença oncológica, a radioterapia “queimou-lhe” os rins, e ela foi obrigada a fazer hemodiálise, três vezes por semana. Sentado à beira da cama dela, já acamada e com um cancro incurável (o segundo), depois de muito sofrimento vivido e com mais nada pela frente a não ser mais sofrimento, ouvia-a dizer-me, enquanto dávamos as mãos: “Estou tão cansada… não consigo lutar mais, compreendes a avó? Quero ir.” Tão consciente e lúcida quanto eu estou agora. Como quem pede consentimento e desculpa.
Sem outra alternativa viável, a minha avó escolheu não fazer mais hemodiálise, perfeitamente ciente de que morreria em breve. E assim foi: ao longo de quase duas semanas, obrigada a morrer lentamente. Obrigada a ver nos filhos e nos netos a dor de a vermos partir lentamente, de juntos vivermos a sua morte ao longo de dias. E para a minha avó ainda assim querer morrer, apesar dessa imensa dor que viu em quem tanto amava, o seu sofrimento só podia ser ainda mais atroz. Além do que conseguimos conceber.
Como mulher de pouca sorte que foi, a “sorte” da minha avó foi depender de hemodiálise. Quando partilhou com a médica que a acompanhava que não tinha mais forças para lutar contra um cancro já incurável, foi a médica quem lhe revelou que era seu direito recusar mais tratamentos e que, parando a hemodiálise, morreria em pouco tempo. Alguém imagina o que é ouvir isto como uma boa notícia? Alguém imagina que um dia gostava de poder olhar esta médica nos olhos e dizer-lhe “obrigado”?
O direito a morrer com dignidade compreende o direito à recusa ou abstenção de tratamentos médicos e/ou cirúrgicos, ainda que, dessa recusa ou abstenção, resulte a morte. É a escolha que temos: o direito a sofrer ainda mais, a morrer lentamente. Ou o suicídio. Porque pode a lei dizer-me que não tenho direito a pôr um fim digno e medicamente assistido à minha vida? A dignidade na morte é um direito individual, inalienável. É por isso que a eutanásia não é matéria referendável, e quem não compreende isto tem, perdoem-me, uma séria limitação intelectual. Será sempre uma decisão individual, que só à pessoa diz respeito, é um ato de autodeterminação, não pode estar sujeito à vontade dos outros, nem de maiorias. Ninguém tem o direito de se opor à eutanásia, a não ser à sua. Sim, é assim tão simples.
Vi o meu pai definhar até morrer, com cancro. Não teve a “sorte” de depender de hemodiálise, não teve escolha. Vi-o querer partir, e, por mais que nos doesse, perto do fim, já não estava sozinho nessa vontade – embora, como família, tantas vezes nos sentíssemos sós, abandonados pelo sistema de saúde, completamente destituídos de direitos. E assim se vive e se morre, em Portugal. Por pouco tempo, esperemos.
Tiago Mota
Pintura de capa por Jacques-Louis David
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