Raramente padeço da síndrome da folha em branco ou de hesitação para escrever sobre o que me inflama o peito. Escrevo com o desejo de que, ao transformar palavras em pensamento, essas mesmas palavras sejam também agentes de uma mudança, uma pequena revolução. Mas neste tema, no entanto, sinto-me quase rendida. Ele toca-me profundamente, e, ainda assim, tudo o que eu possa dizer parece sumir como um grito solitário a perder-se no vazio.
O estado da educação em Portugal é uma daquelas realidades que todos, em algum momento, sentiram na pele. É um tema visceral, sobre o qual cada um guarda uma opinião baseada, não em teorias ou estudos, mas nas memórias dos dias passados em salas de aula, nos ecos de uma experiência que se tornaram quase universais. Este texto, porém, não é sobre técnicas de ensino, nem sobre sucessos ou fracassos pedagógicos. Não é sobre as discussões fervorosas entre alunos, professores e famílias sobre o valor dos exames nacionais e provas de aferição. Essas questões, deixo-as para os pedagogos e para os tratados que habitam as prateleiras das bibliotecas.
Este é o manifesto de alguém que, até há uns anos, sonhava em ser professora. Porquê? Porque, entre os muitos motivos que sustentaram esse sonho, havia o fascínio por aqueles professores que, com uma devoção sem reservas, transformavam o ato de ensinar numa missão. Lembro-me de os ver entrar na sala com um sorriso pleno, que era, para mim, o sinal de uma vocação verdadeira. Pode parecer uma imagem romântica, mas tive o privilégio de cruzar o meu caminho com mestres extraordinários. O que eu não sabia, porém, era o que se escondia por detrás desse sorriso – o peso das horas mal remuneradas, das incertezas, da falta de reconhecimento.
Quando saí do Ensino Secundário, cruzei-me com um antigo professor e este, sem saber, abriu-me os olhos, numa conversa íntima e crua, sobre os desafios que o consumiam no dia a dia. Com mais de trinta anos de carreira, continuava preso à incerteza dos contratos precários, sem saber em que escola estaria no próximo ano, em que cidade, se teria o suficiente para cobrir as suas necessidades e as da sua filha, que, por circunstâncias da vida, dependia exclusivamente dele. A sua dedicação era um hino de resistência, mas era também uma prova do desamparo em que muitos como ele se encontram.
Talvez me digam: “Mas ele sabia ao que ia, não é?” Não, não sabia. Nenhum de nós sabia. Não sabia que os governos, um após o outro, iriam descartar as reivindicações de uma classe que, em tempos, foi respeitada e ouvida. Não sabia que as suas esperanças de crescimento e segurança numa carreira seriam congeladas, e que, tal como ele, centenas de outros viveriam na corda bamba. O país foi-lhes tirando o chão, pouco a pouco, e hoje, Portugal paga o preço dessa falta de visão. Todos os dias, ligamos a televisão e ouvimos, quase como um refrão, que faltam professores aqui, que faltam professores ali, que as escolas mal se seguram. E o que fazem os governos? Medidas, medidas, todas elas paliativas, e, de tantas que são, estão vazias de sentido.
Olhemos o Decreto-Lei n.º 51/2024, de 28 de agosto. Fala de medidas para colmatar a falta de professores, mas nenhuma delas realmente vai ao cerne da questão: o modelo de recrutamento e gestão. Ao invés de resolver o problema pela raiz, adiam-se soluções e cobrem-se lacunas com retalhos mal cosidos. Entre as medidas propostas, uma é quase trágica na sua ironia: manter no ativo professores que já atingiram a idade da reforma, oferecendo-lhes um aumento de 750 € mensais, sobre o seu salário, como forma de compensação. É um absurdo que beira o cómico, senão fosse tão sério e revelador do desespero em que o sistema se encontra.
Há, então, promessas de atrair mais pessoas para a profissão, com a isenção de propinas para os cursos de Educação Básica e de Mestrados em Ensino de disciplinas específicas, subsídios para custos de transporte, ajudas de custo. Ao ler o decreto supramencionado, percebe-se como a governação do país gosta de criar armadilhas à classe docente: para receber o primeiro dos apoios, por exemplo, os futuros professores terão de selecionar, ao candidatarem-se a dar aulas após a conclusão da sua formação, pelo menos 20 códigos de quadro de zona pedagógica e 60 códigos de agrupamentos de escola ou de escolas não agrupadas, o que poderá resultar em colocações a centenas de quilómetros de casa. O peso da incerteza e da dispersão continuará a esmagá-los.
Lembro-me de uma conversa recente com esse professor que tanto me marcou. “Sofia, isto um dia vai ter de mudar”, dizia ele, com um misto de esperança e resignação. Mas, ao ver os sinais, temo que a mudança chegue por caminhos que não trarão justiça. Temo que o destino da educação pública siga o mesmo percurso do Sistema Nacional de Saúde, onde o avanço dos privados veio a custo de um serviço que foi, durante tanto tempo, um orgulho do país. Assim se transforma a esperança em desalento, e aquilo que deveria ser um direito, em mais um espaço para o lucro. No fim de contas, “Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar. Privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. […] já agora, privatize-se também a **** que os pariu a todos.” (José Saramago, in Cadernos de Lanzarote – Diário III – pág. 148).
Pintura de capa por Levan Ramishvili
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