O que deixamos e levamos, a Relação

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Precisar do ponto de chegada e partida, definir o que cada um de nós condensa, o que mais se aproxima do concreto, objetivamente, está na dimensão orgânica do sopro, da pequenez e da passagem. Sabemos que somos um grão de areia.

Porém, se olharmos numa escala diferente para o grão de areia como um rochedo, para cada um de nós como um grande corpo autocriativo, numa necessidade humana de ilusão, e quisermos acrescentar valor, ou sentido, ao que somos e ao que deixamos quando morremos, o que fica?

Fica a informação genética, molecular, transmitida pelos vínculos de sangue? Fica gravado algo mais, como memórias, conceções morais e traços de personalidade? Da pauta musical do nosso ADN (ácido desoxirribonucleico), que nos torna únicos em 0,1%, e simultaneamente iguais, por partilharmos quase 99,95%, herdado da nossa genealogia, famílias e progenitores, permanece o quê? A que ilusão nos agarramos quando pensamos em legado, herança ou testemunho?

A história humana, a narrativa possível e científica do coletivo, é inegável património, matriz, embarcação para renovadas construções da nossa aventura e convivência social ou cultural. E da história individual, íntima e indizível de cada um, o que fica? Do percurso efémero, por mais reconhecido entre pares que tenha sido, do olhar, do vivido, do percecionado que cada um de nós alcançou, o que não se desvanece com a borracha do tempo?

A relação qualificante. A relação, rede de correlação, com curta ou longa duração, que recriamos com os outros, inclusive tudo o que é exterior a nós, como o ambiente, outras espécies, os elementos da casa comum. A nossa essência de interdependência, de vínculo a tudo o que nos cerca e alimenta, propõem-nos o desafio de construir relações diferenciadoras, inspiradoras e autênticas.

Nas relações mais comuns ou convencionais, profissionais, afetivas, cordiais, esporádicas ou com nós próprios – há sempre um movimento de troca, de acontecimento, de presença. A linguagem privilegiada da relação é a partilha, o relato, com a necessária disponibilidade de escuta. Eu sou, tu és, e encontramos no elo, na partilha, um território comum. A possibilidade do díspar como ligação a uma teia que se alastra, mais se torna consistente, gratificante, quanto mais maturada, dignificada e legitimada pelas partes implicadas. Acrescenta ao individual a unidade do múltiplo. A unidade como território maior.

Sabemos que nem todas as relações são satisfatórias, expectáveis ou coerentes. Muito falha com o défice ético, empático e equitativo. Ou falha a comunicação, a verdade e a transparência, ou prevalecem os jogos de poder, de vaidade e subjugação.

Da relação qualificante, sempre criativa, pode ficar a pretensão do sonho, das revelações, das viagens, dos signos valorados. Pode ficar também um sorriso inesperado, um gesto nobre, um abraço envolvente, uma confirmação. Quando é inaugural dizer o seu nome, chamarem-nos pelo nome.

Cultivar um só tipo de relação é pouco enriquecedor. Manter relações por convenção ou por correntes familiares é escravizante. Ser obcecado pela presença constante dos outros não abre espaço para cumprir-se na relação connosco, e essa, sim, é uma relação para o resto da vida.

Nas relações de amizade, ainda pouco legitimadas socialmente, pois o padrão cultural não as prioriza no mesmo patamar dos laços familiares, não temos licenças para dar assistência a um amigo ou amiga, nem para ir ao funeral ou ter alguns dias de luto por uma pessoa ou mesmo um animal que nos foi tão próximo e importante. Numa efeméride, acontecimento marcante, ou testamento, é suposto estarem em primeiro lugar familiares, não os amigos. Porém, a amizade é a mestra de todas as relações.

Na relação com os animais de estimação são inquestionáveis as possibilidades qualificantes de conexão que se podem desenvolver com outras espécies, outras linguagens, outras presenças e verdades. É impagável pelo tanto que dão, é fácil comprovar com inúmeras histórias, a companhia e cumplicidade decisiva dos animais com pessoas sem abrigo, pessoas idosas, isoladas, marginalizadas socialmente, com défices de desenvolvimento ou desnorteadas espiritualmente. A relação com os animais não humanos, não retira ou impede em nada, a relação com os animais humanos, acrescenta.

Com a natureza, os ecossistemas e a biodiversidade, da qual somos resultado, essa interação quotidiana, o entendimento de interdependência deve ser constantemente ajustado e reeducado. Não só por uma razão de subsistência e sobrevivência, mas porque a beleza mais pura e admirável, as obras mais plenas e perfeitas, encontram-se nos seres vivos, nos espaços e no tempo em que a Natureza é em plenitude e harmonia, com os seus ciclos, elementos e leis enigmáticas ou indecifráveis. O nosso alimento espiritual e relacional está privilegiadamente nos recantos naturais do planeta, com a respiração da Terra. Infelizmente, e como sabemos, um planeta em ferida aberta.

Na relação educativa estruturante com os jovens, para a formação ou evolução pessoal e cívica, uma relação integral, humanista, artística e demorada, feita de matéria frágil, emotiva, tantas vezes discreta ou invisível, nos espaços privilegiados de uma escola, as semeaduras, as alavancas se efetivam, ou não, para a consumação do ideal humano, efetivamente urgente entre ambientes familiares desestruturados e negligentes.

Na relação amorosa de expressão sexual, na sua recriação de intimidade partilhada, não só de vivências e segredos, mas de corpos e sentidos que se reconhecem pela dança intemporal e instintiva, o vínculo pode despoletar a transmutação. Tantas vezes é imensurável a linguagem poética dos corpos aí manifesta. A profundidade do mistério aflorada nas bocas que se ligam, nos odores e fluidos transferidos, nas peles e membros que se tocam. O olhar apaixonado de um converte-se ao olhar do outro, como um nascimento.

São nos momentos desesperantes, de limite, ou perto de uma partida, que logo nos ocorre a necessidade de presença dos nossos, daqueles e daquelas com quem criamos relações mais substanciais. A ideia de infinitude nem sempre está na consumação individual, mas nos horizontes de encontro diferenciadores, que construímos uns em relação com os outros.

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