Desde o dia 1 de março de 2024, com a implementação de um Plano de Contingência, a Urgência Pediátrica de Viseu (Unidade Local de Saúde Viseu-Dão-Lafões – Hospital de São Teotónio – Centro Hospitalar Tondela-Viseu) passou a encerrar nos períodos noturnos, de quinta-feira a domingo. Com anúncio a 20 de maio, a partir do dia 1 de junho, as urgências passaram a encerrar todas as noites, entre as 20h e as 9h do dia seguinte. Já no verão de 2023, a urgência pediátrica havia recorrido à prestação de serviços de pediatras de outros hospitais. Para este serviço, o concurso do ano de 2023 ficou deserto, e a situação agravou-se desde então, com a saída de dois médicos internos e devido ao atraso na abertura do concurso nacional para a contratação de médicos recém-especialistas. A justificação da Unidade Local de Saúde (ULS) foi a manutenção do funcionamento normal do Bloco de Partos de Ginecologia-Obstetrícia e Neonatologia. Através do SNS 24, alguns doentes seriam, segundo os planos do governo, atendidos pela Consulta de Atendimento Complementar Infantil (Cuidados de Saúde Primários), no Centro de Saúde Viseu 3, em Jugueiros. No entanto, este plano não está a funcionar corretamente. As soluções alternativas são Aveiro e Guarda, a 80km, e, a mais óbvia, Coimbra, pelo perigoso IP3.
Face ao encerramento, surgiu, em Viseu, um movimento de cidadãos para exigir a reabertura total da urgência pediátrica, em linha com a defesa do direito à saúde das crianças da região. Uma petição pública juntou mais de 13 000 assinaturas, e mais de 500 pessoas marcharam do Rossio ao Hospital de Viseu, a 1 de junho, Dia Internacional da Criança. Foi organizada uma vigília, um buzinão e ainda outra manifestação. Ao mesmo tempo, a 23 de maio, o governo foi questionado (pela deputada Marisa Matias) sobre o encerramento das urgências pediátricas. Na Assembleia Municipal de Viseu, uma moção que apelava à unidade pela reabertura total das urgências foi aprovada (com uma abstenção). O PSD procurou mascarar as críticas à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e fez aprovar a sua própria moção (com nove abstenções). Somaram-se, à esquerda, pedidos de audição, que já aconteceu, à administração demissionária da ULS, considerando que a ministra estaria a “sacudir a água do capote”.
O atual governo do PSD, pela voz da ministra da Saúde, procurou culpar as administrações hospitalares pela generalidade dos problemas no Serviço Nacional de Saúde (SNS). A 12 de junho, na Assembleia da República, a ministra deixou um aviso explícito: “Temos lideranças fracas”. Como resposta, no dia seguinte, o Conselho de Administração da ULS Viseu-Dão-Lafões apresentou a sua demissão e, até ao dia em que escrevo este texto, quarenta e nove dias depois, não foi substituída. É caricato que a ministra que criticou a liderança “fraca” da ULS ainda não a tenha substituído, mantendo-a à frente da unidade mesmo no período crítico do verão. Também no que trata diretamente das Urgências Pediátricas de Viseu, a ministra mentiu. Também o ministro da Presidência, Pedro Leitão Amaro, eleito por Viseu, que fez, em março, campanha eleitoral à porta do hospital, afirmou que a decisão de encerrar, em período noturno, as urgências foi tomada pela administração “à revelia do Governo”. Ambos mentiram, pois sabiam desde o dia 14 de maio do encerramento e nada fizeram quanto ao tema.
Os primeiros meses de Ana Paula Martins à frente do Ministério da Saúde ficam, de resto, marcados por inúmeras novelas que se somam em ritmo acelerado: a demissão da Direção Executiva do SNS, pedindo-lhe depois que elaborasse um plano de verão para o SNS, a demissão de dois diretores do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), o ataque às lideranças hospitalares, as orientações para deixar de publicar (esconder, portanto) o mapa das urgências fechadas, a mentira sobre o número de consultas de oncologia, o estabelecimento de acordos com o Estado de Israel em pleno genocídio do povo palestiniano em Gaza, entre outras. Tem apenas uma estratégia para esconder a sua pulsão privatizadora do SNS: quando não mente, atira culpas a outrem.
O encerramento das urgências pediátricas em Viseu não é, como é bem sabido, caso isolado, nem os problemas do SNS são de agora. A saúde foi vítima do desgoverno da maioria absoluta do PS. No final de 2021, 1 139 340 pessoas não tinham médico de família; no final de 2023, o número havia aumentado para 1 724 859 pessoas. Durante a maioria absoluta, houve momentos em que trinta ou mais urgências estavam encerradas ou com fortes constrangimentos. A despesa do governo em saúde até aumentou, mas com uma percentagem cada vez maior a ir para o setor privado e a ser gasto em “pensos rápidos” e não nas soluções de fundo necessárias. Os gastos em “tarefeiros” aumentaram 31% entre 2020 e 2022. Os gastos com Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (que podiam ser internalizados no SNS) aumentaram 47% entre 2020 e 2023. Ao mesmo tempo, o SNS tem uma suborçamentação acumulada de mais de 3 900 milhões de euros entre 2019 e 2023. Para o ano de 2022, foram executados apenas 37% do investimento orçamentado para o SNS (311M€ de 836M€), uma percentagem que vem descendo continuamente desde 2019. A maioria absoluta revelou ainda um apetite particular pela privatização do SNS, com Manuel Pizarro a propor USF (Unidades de Saúde Familiar, centros de saúde) do tipo “C”, isto é, privados, descurando a necessidade do caráter público e universal dos serviços de saúde.
Os planos do atual governo juntam as medidas e opções fracassadas da maioria absoluta do PS com uma pulsão privatizadora ainda mais forte que o governo anterior. O PSD vai mesmo atirar centros de saúde para o setor privado, mas esta discussão ficará para outro texto. Mais do que moralismos sobre os conselhos de administração, são necessárias políticas reais para a resolução dos problemas do SNS. Há um processo de desestruturação em curso do sistema, ao qual urge resistir. Perante a situação, temos duas certezas: faltam milhares de profissionais no SNS, e falta capacidade para fixar os profissionais, no SNS em geral, mas também no interior em particular. E esses são os dois principais desafios a resolver. Não é dizendo mal dos profissionais do SNS que eles se fixam, mas valorizando as suas carreiras e melhorando as suas condições.
As negociações, difíceis e que ainda duram, entre profissionais de saúde e Ministério da Saúde, deveriam resultar numa revisão das carreiras e das posições remuneratórias que tornem o exercício das profissões no SNS atrativo em todo o território. Se os concursos para o SNS ficam sucessivamente vazios, devem ser alteradas as condições dos mesmos. Deveria existir um regime real de exclusividade (e não a “dedicação plena” do PS), de adesão voluntária para todos os trabalhadores do SNS, com majoração dos seus salários em 40%. Deveria ser efetuado o investimento de fundo de que tanto necessita o SNS, invertendo lógicas de suborçamentação e entrega ao setor privado, e permitindo poupanças de milhões em tarefeiros e outros “pensos rápidos”, através da contratação real de profissionais para os quadros. Os cuidados de saúde primários deveriam receber atenção redobrada, pela sua proximidade à população, assim como para libertar urgências dos centros urbanos. Por exemplo, reabrir o SAP de Mangualde permitiria libertar algum peso às urgências de Viseu. Só com estas transformações se pode almejar um SNS verdadeiramente público, universal e de qualidade. Mas o PSD não está disposto a fazê-las. Aliás, caminha no sentido contrário.
Pintura de capa por Rembrandt
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