Ah, a liberdade de expressão! Esse conceito nobre, elegante, quase aristocrático, que percorre os salões dourados do pensamento humano desde os tempos de Sócrates, que – diga-se de passagem – nunca viu um ‘tweet’ na vida, mas foi condenado por corromper a juventude com umas ideias perigosas. Se estivesse por cá, talvez tivesse o seu perfil suspenso.
O que diriam agora os nossos grandes defensores da liberdade, como John Stuart Mill, ao observarem figuras contemporâneas como Elon Musk a brincar com o conceito de liberdade de expressão como quem mexe no termóstato de uma nave espacial? Talvez ficassem algo intrigados, entre uma pitada de ironia e um ataque de riso, ao perceber que o debate sobre a livre circulação de ideias, no século XXI, inclui algo tão sublime como redes sociais geridas por magnatas com um sentido de humor questionável.
Elon Musk, o novo messias da tecnologia e da indústria aeroespacial, parece ter-se autoimposto a missão de redefinir a liberdade de expressão no mundo digital, com uma leveza digna de um bilionário excêntrico. Afinal, comprou o ‘Twitter’ (agora X) e afiançou que se tornaria a arena perfeita para o debate livre e sem censura.
Talvez Voltaire sorrisse à distância, ele que nos deu a célebre frase: “Eu não aprovo o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres.” Porém, duvido que Voltaire tivesse a paciência de seguir Musk depois de algumas centenas de ‘tweets’, ‘memes’ e respostas passivo-agressivas.
A questão com Musk é que a sua noção de liberdade de expressão parece ser liberdade para ele, e quem o chateia vai de vela. Com um clique, alguém pode ser silenciado, cancelado, ou ‘shadow-banned’, numa ironia deliciosa que demonstra como as grandes batalhas pela liberdade hoje se travam nas teclas dos nossos smartphones. Mas não é só Musk que faz disto um espetáculo.
No outro canto do ringue, temos o governo brasileiro, que, num braço de ferro digno de uma telenovela, decidiu que a liberdade de expressão nas redes sociais deveria ter limites. Especialmente quando se trata de fake news, e, arriscaria mesmo dizer, conspirações bizarras (terreno fértil para aqueles lados) ou políticos com um talento especial para discursos inflamados.
Imagino George Orwell, o profeta moderno da distopia, a revirar-se no túmulo. Se em “1984” nos alertava sobre a manipulação da verdade e o controlo do pensamento, hoje estaria a ponderar reescrever o livro. Talvez algo mais como: “2024 – ‘Tweets’ são Verdade”. Porque, no fundo, a luta pelo controlo da opinião pública parece ter passado do Ministério da Verdade para o algoritmo da moda.
Miguel Esteves Cardoso, mestre da ironia e da crítica social portuguesa, provavelmente já teria dito qualquer coisa genial sobre o estado atual da comunicação pública. Algo do tipo: “Hoje, não precisamos de ditadores para nos dizer o que pensar. Temos algoritmos para isso.” E não seria difícil concordar.
A liberdade de expressão, esse direito que nos deveria libertar, parece ter sido, de alguma forma, sequestrada por quem domina as plataformas de comunicação. Não só Musk, claro. Temos também o império das Big Tech, que, com uma postura discreta e tecnocrática, decide o que é aceitável e o que deve ser silenciado – em nome da proteção dos utilizadores, quando, na realidade, estão a proteger os acionistas.
Veja-se como exemplo o polémico caso do portátil de Hunter Biden, filho de Joe Biden, cuja história desapareceu, de repente, das redes. Ou o caso da Apple, que foi apanhada a remover apps de manifestantes em Hong Kong. Ou ainda a Amazon, que elimina do catálogo livros ou produtos controversos, que não sigam a narrativa do dia.
Contudo, há algo de particularmente intrigante nesta nova arena. De um lado, temos bilionários como Musk a posarem de defensores da liberdade total, enquanto vendem ideias e foguetes ao melhor preço; do outro, governos como o do Brasil, que se dizem preocupados com a desinformação, mas que também sabem que controlar a narrativa é essencial para manter o poder. E, no meio disto tudo, nós, os cidadãos comuns, estamos a tentar perceber se o que lemos é verdade ou o último produto de uma fazenda de ‘bots’ em algum canto do mundo.
Imagino o pobre John Locke, o pai do liberalismo, a tentar compreender como foi possível que a sua ideia de liberdade individual tenha sido transformada numa guerra de ‘tweets’. Locke, que defendia a importância da razão e do diálogo para alcançar a verdade, teria dificuldades em encontrar qualquer razão nas guerras de comentários. As suas crenças na racionalidade e numa natureza humana que não julgava ser intrinsecamente má seriam colocadas à prova ao ver discussões online entre apoiantes de Musk e os seus detratores, cheias de ‘caps lock’, insultos e, claro, ‘gifs’ de gatinhos.
No fundo, a grande ironia da nossa era é que, embora tenhamos à disposição mais plataformas do que nunca para expressar as nossas ideias, estamos cada vez mais condicionados por elas. A liberdade de expressão, que outrora implicava o corajoso exercício de dizer o que se pensava, hoje parece um campo minado de interesses comerciais, controlo governamental e batalhas entre titãs tecnológicos.
Se os clássicos voltassem, talvez não fizessem nada para mudar o cenário, mas tenho a certeza de que gozariam o suficiente para encher várias bibliotecas de novas obras. Afinal, o espetáculo de multimilionários a discutir liberdade de expressão com governos, enquanto algoritmos decidem o que vemos, tem toda a matéria-prima de uma comédia à escala global.
E no meio deste circo digital, resta-nos sorrir. Porque se a liberdade de expressão está em crise, pelo menos temos ‘memes’ para nos entreter.
Pintura de capa por Eugène Delacroix
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