O Mundo Encantado do Acolhimento Residencial

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Este filme não inicia com foguetes, o castelo majestoso da Disney ou os pirlimpimpins de fada. Crianças e Jovens (C/J) em risco… É inevitável abordar o Sistema de Promoção e Proteção de C/J em Portugal. A intervenção para a promoção dos direitos e a proteção é legitimada quando o desenvolvimento da criança está em perigo e a sua segurança, saúde, formação e educação comprometidas, sendo os pais ou seus substitutos legais os responsáveis por essa situação. Diria a Ariel: “Não entendo como um mundo que faz coisas tão maravilhosas pode ser tão mau”.

De acordo com o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ)1, em 2023, foram acompanhadas 79 511 C/J. São quase tantas como o número de manchas em 101 Dálmatas.

Podem ser adotados dois tipos de medidas de promoção e proteção: em meio natural de vida, como o apoio junto dos pais, de outro familiar, para a autonomia de vida, entre outros; e medidas de colocação, como o acolhimento familiar e residencial (artigo 35.º, LPCJP)2. E que princípios norteiam estas intervenções? A priorização do superior interesse da criança, o respeito pela sua privacidade, a audição obrigatória e participação, e a intervenção precoce, mínima, proporcional, atual e subsidiária, visando, sempre que possível, a responsabilidade parental (artigo 4.º, LPCJP). Até aqui é uma lei bem bonita e, na minha perspetiva, bem conseguida. Porém, sabemos que se bastasse haver leis para alterar práticas sociais, provavelmente viveríamos num filme da Disney. Ou seja, é necessário que todos os seus pressupostos sejam cumpridos e respeitados, sustentados em políticas públicas densas e articuladas, para que efetivamente se cumpram os direitos das crianças.

Vamos, então, problematizar: em 2023, as CPCJ levaram, em média, 170 dias (cerca de cinco meses) para a conclusão do diagnóstico da situação da criança, cessaram a sua intervenção em 47 537 processos, porém, do total de casos acompanhados, 9142 foram reabertos (CNPDPCJ, 2023). Será que há riscos que não foram eliminados numa primeira intervenção? Será que não há acompanhamento suficiente após a cessação de medidas? Será importante a intervenção em contexto? Sentir-se-ão compreendidos os principais interessados no processo? Será que há muitos processos por profissional, o que pode limitar o desempenho no acompanhamento? Deixo-vos a refletir.

Neste artigo, o foco serão as medidas de colocação, mais especificamente, o Acolhimento Residencial (AR). Em Portugal, a 1 de novembro de 2022, encontravam-se 5386 C/J em acolhimento residencial generalista que, em média, permanecem acolhidos 3,3 anos – recordo que esta é suposto ser uma resposta temporária (IP, 2023)3. O AR pretende satisfazer as necessidades físicas, emocionais, educativas e sociais das C/J, mas também reparar o dano resultante da exposição à adversidade, oferecendo um ambiente protetor e emocionalmente estável, através de práticas terapêuticas e individualizadas, permitindo o efetivo exercício dos seus direitos. No fundo, poderia ser inspirado no nome havaiano Lilo & Stitch, que significa “o generoso”. Lilo oferece a Stitch um local para viver, com uma família. E querem estas C/J integrá-la? Perentoriamente, não. Há uma normalidade dentro da disfuncionalidade. Como diz Stitch: “This is my family. I found it all on my own. It’s little, and broken, but still good. Yeah. Still good.”

Afinal, quem são os Bambis que ali residem? “São os órfãos de pais vivos, que sofrem da forma mais cruel de abandono, que é a indiferença” (Mota, 2021, p. 21)4. Muito duro? Bem-vindos ao mundo encantado do acolhimento. Engraçado (não tem graça nenhuma) que a maioria das personagens principais da Disney não têm os pais presentes… Já percebemos que negligência e trauma parecem ser palavras-chave neste contexto. Relação é uma palavra-chave em qualquer um. Como se associam? Vinculação. Ora, quando o desenvolvimento da relação com as figuras de vinculação se associa à negligência, é bem provável que se construa uma vinculação insegura e, consequentemente, uma perceção de si enquanto não merecedor de atenção e cuidado. É, viver em ambientes desestruturados e/ou de violência deixa marcas profundas, sendo uma realidade transversal a todos os estratos socioeconómicos e culturais. Podemos começar assim a compreender algumas das características e problemáticas que vislumbramos neste contexto: maior risco de perturbações de personalidade, ansiedade e depressão, maior probabilidade de envolvimento em comportamentos criminais ou violentos e maior possibilidade de problemas de cognição, que certamente impactarão o desempenho escolar.

Muitas vezes ouvimos que quem está nas casas de acolhimento são crianças e jovens “maus”. Sou mau por ter feridas físicas e emocionais que me desorganizaram internamente? São as crianças as vilãs desta história? Não são elas o reflexo do desinvestimento de quem cuida (ou deveria cuidar)? Será que eu confiaria nos adultos e, consequentemente, nos meus pares, se durante toda a minha infância estive por minha conta? Como diria a Mãe Gother, no filme Entrelaçados: “O mundo é cruel, egoísta e sombrio (…)”. Irónico ser uma mãe a dizê-lo neste caso.

Mas sim, é possível as C/J desenvolverem novos modelos internos dinâmicos em novos modelos de relação com as figuras cuidadoras no AR – não existem condenações perpétuas no mundo afetivo. A verdade é que qualquer um pode sonhar mais alto no contacto com uma criança e no encanto de ver o mundo gigante nuns olhos pequeninos. Nesta área, o olhar vislumbra realidades duras, de um sofrimento que provavelmente não desejamos a ninguém. Como num filme da Disney, revela-nos o poder do cuidado, do amor, de não desistir e acreditar, de ajustar expectativas. Como disse o personagem Olaf, em Frozen: “An act of true love can thaw a frozen heart”. Acredito genuinamente nisto. Embora, quando o coração está ferido, este descongelar pode ser tardio. Cruamente, esta área mostra-nos como somos contexto. Sermos seres biopsicossociais não é de todo um pretexto.


  1. CNPDPCJ. Relatório Anual de Avaliação da Atividade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens do ano de 2023. Disponível em: https://www.cnpdpcj.gov.pt/relatorio-atividades ↩︎
  2. Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, n.º 26/2018. (5 de julho, 2018). Diário da República n.º 204, Série A de 1-09-1999. Disponível em: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=545&tabela=leis&so_miolo%20 ↩︎
  3. Instituto da Segurança Social, I.P. (Julho, 2023). CASA 2022 – Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens. Disponível em: https://www.seg-social.pt/documents/10152/13200/Relat%C3%B3rio+CASA+2022/c1d7359c-0c75-4aae-b916-3980070d4471 ↩︎
  4. Mota, C. (2021). Crianças, Jovens e Cuidadores no Acolhimento Residencial: A vivência de quem cuida e de quem quer ser cuidado. Edições Sílabo. ↩︎

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