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A primeira vez que vi a minha mãe a chorar está-me marcada na pele como cada uma das tatuagens que tenho a adornar-me o corpo. Não me recordo da razão que a levou a quebrar à minha frente naquele dia. Lembro-me apenas de lhe ver a cara desfigurada e um líquido transparente a escorrer-lhe dos olhos. Um líquido que na minha cara chamavam de lágrima, mas que no rosto da minha mãe, eu só conseguia chamar de medo.

Há sempre uma altura, um momento ou uma fração de segundo em que percebemos que os nossos pais são humanos. Em que a roupa do super-herói, que julgávamos que eles eram, fica esquecida em cima da cómoda e nos mostra que, por baixo, estão apenas pele, pelos e poros. Vemo-los, pela primeira vez, com uma aparência semelhante à nossa. Vemo-los como nos vemos e poucas coisas são mais aterradoras que isso.

Aquele dia, que está marcado a ferros quentes na minha memória, mudou não só a forma como passei a ver a minha mãe, como a forma de interagir com ela. Acho que nunca lho disse e provavelmente irá descobrir ao ler este texto. Há muita coisa que me habituei a não dizer à minha mãe ou a qualquer outra pessoa. Passei a ter medo de dizer ou fazer algo que lhe espoletasse o choro. Esse sentimento continua a assolar-me inesperadamente, em tarefas mundanas, lembrando-me que somos todos feitos da mesma coisa e do quão absurdo me parece a ideia da minha mãe ser, supostamente, igual a mim ou a outra pessoa qualquer.

Até àquele dia, eu acreditava que ela era o forte indestrutível e intransponível que mostrava ser a toda a gente. A minha mãe resolvia todos os problemas do mundo, com a calma e frieza necessárias para que ninguém se contaminasse com o nervosismo que seria normal, em determinadas situações. Ela era doce comigo e implacável com o mundo. Tinha sempre as palavras certas, guardadas numa gaveta invisível do seu cérebro, para que as coisas corressem da forma mais tranquila. A seu favor, se possível, como toda a gente costuma desejar. Via nela a força de alguém que tinha tudo para ser fraca, mas que nunca deu hipótese a ninguém de sequer pensar nisso. Sempre entre a cordialidade e a força bruta de uma pessoa que recusa deixar-se vencer pela vida. Chorar nunca esteve nos planos da minha querida mãe.

Os pais são sempre a imagem do que queremos ser. Pelo menos enquanto a idade, o tempo e os acontecimentos não nos mostram, forçadamente, o contrário. Durante toda a infância desejei crescer até ter o tamanho da minha mãe. Era pequena e dizia-lhe: mãe, és gigante. Ela respondia-me sempre que não, que era pequena, e eu sem perceber em que planeta é que aquilo poderia ser verdade. Olhava-a de baixo e o seu metro e meio não tinha fim. Ela era um castelo.

Queria ter a força dela para enfrentar o mundo, a confiança de não deixar ninguém duvidar de que ela era capaz de fazer o que ela achava ser capaz de fazer. A minha mãe sempre conseguiu fazer tudo, menos chorar ao pé de mim. Naquele dia, sem me ter preparado, ela desabou, comigo ao lado, levando com ela a ideia que eu criara de que era possível derrotar todos os males do mundo. Num instante, sem ter culpa alguma, ela criou um dos meus maiores medos: vê-la chorar de novo.

Eu era nova demais para perceber que aquele momento poderia ter-se tornado numa porta para conhecer um lado que a minha mãe nunca me tinha mostrado, que isso poderia ter sido uma coisa boa e não necessariamente algo a ser evitado, mas eu era uma criança sem maturidade suficiente para contrariar os exemplos que via à minha volta. A minha família era feita de rochas. As rochas nunca choraram e não iam começar ali.

Os anos passaram e fiquei mais alta do que a minha mãe. Voltei a vê-la chorar e nunca tal coisa perdeu o impacto e o medo que trouxe atrelado da primeira vez. Nenhuma de nós soube tornar aquele líquido transparente, que tão raramente surgia na cara da minha mãe, numa coisa normal e humana. Eu sempre fui de choro fácil, e embora achasse que, conforme fosse crescendo, essa característica se fosse esbatendo, só se intensificou. Sou diferente da minha mãe em muita coisa e noutras tantas, espero ser ou tornar-me igual. No entanto, as lágrimas surgem-me com facilidade, com qualquer pessoa, em qualquer lugar, e sempre me pareceu desconfortável demais tentar guardá-las cá dentro. Quando o tentei, achei que me podia afogar.

Hoje sou mãe. Não sou gigante, nem me aproximo do castelo que julgava que a minha mãe era. Sou humana tal como ela sempre foi. Sou mãe e já chorei perto do meu filho mais vezes do que sou capaz de registar na memória. Sou filha e só consigo ver, na falta de lágrimas da minha mãe, uma fragilidade forte de alguém que não se quer deixar cair. Espero que um dia ela consiga ver que as lágrimas intensificam o brilho dos olhos, têm a capacidade de aliviar dores desconhecidas e também escorrem pelas paredes dos fortes mais altos. Espero vê-la pousar a capa de super-herói numa cómoda qualquer, percebendo que chorar é uma das coisas que nos torna iguais. Eu sempre quis ser igual a ela.

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