Os incêndios de 2017 em Portugal deviam estar mais presentes na nossa memória. Entre junho e outubro de 2017, 6% da área do nosso país ardeu, um recorde absoluto.[1] Infelizmente, faleceram 116 pessoas.[2] Uma situação horrenda, resultado da combinação entre uma floresta de monoculturas, completamente desordenada, e fenómenos meteorológicos extremos, agravados pelo aquecimento global, fruto da ação humana.
O ano de 2017 foi o quinto mais quente alguma vez registado, de acordo com dados do início de 2024.[3] É mais uma prova de que a emergência climática está aí (como se ainda fosse preciso demonstrá-lo), e que nos afeta verdadeiramente. Por isso, exige-se ação concreta contra o aquecimento global e na mitigação dos efeitos das alterações climáticas, por exemplo, ao nível das nossas florestas. A ação tem de ser global e integrada – a título de exemplo, em 2023, os céus de Portugal ficaram cobertos de fumo proveniente de enormes incêndios no Canadá.
Depois dos incêndios de junho, o maior dos quais em Pedrógão Grande, houve um enorme fulgor em legislar sobre a floresta. Completamente justificado, dada a gravidade da situação. Rapidamente se aprovou a chamada “Lei do Eucalipto”[4], que teria como objetivo impedir o aumento da área eucaliptal e até fazer com que esta diminuísse.
A promessa era simples – nem mais um eucalipto. Parecia, nesta altura, um pouco mais consensual considerar as graves consequências da monocultura e o facto de esta espécie ser muito mais facilmente inflamável, fator decisivo nestes incêndios. Para além disso, o eucalipto empobrece fortemente o solo em nutrientes e acidifica-o.
Foi sol de pouca dura – a área de eucalipto no país não diminuiu, ou seja, não se conseguiu aplicar a lei. Aliás, já se legislou no sentido de permitir e acelerar o aumento da área de eucalipto. Entre outubro de 2013 e o final de 2018 foi autorizado o plantio de 11 000 novos hectares de eucaliptal. Só em 2021, foram autorizados 36 726 novos hectares. A área de eucaliptal autorizada passa a ser de 881 735 hectares, quase 10% da área do país.[5] A narrativa mudou então para uma aposta forte no combate, com grandes aquisições de aviões e helicópteros.
Obviamente é positivo o reforço em equipamentos de combate a incêndios. Mas a aposta apenas no combate, sem as necessárias transformações estruturais na floresta, de pouco servirá, é falaciosa. Analisemos o caso do incêndio da Lousã, em outubro de 2017, para ilustrar a falácia. Mais uma vez, uma conjugação de fatores meteorológicos e de ordenamento florestal levaram à propagação de um grande incêndio, numa época do ano na qual não era comum. Segundo o relatório da Comissão Parlamentar que analisou este incêndio, concluiu-se que este se tornou incontrolável após apenas 17 minutos de deflagrar. Tendo em conta que as equipas de bombeiros já estavam a combater o fogo 10 minutos depois do seu início, é impossível, por muito qualificados e bem equipados que estejam quaisquer equipas de bombeiros, extinguir um fogo em 7 minutos. Daí serem fundamentais transformações estruturais.
Uma análise da situação no município mais arborizado do país – Mortágua – pode contribuir para compreender a necessidade dessas transformações. Mortágua tem uma taxa de arborização de 84%. Desses 84% que constituem a floresta mortaguense, 94,93% são eucaliptos – um número assustador. Em outubro de 2017, mais de um quarto do concelho e cerca de 32% da área florestal ardeu. Dos 6611,3 hectares ardidos (nem todos florestais) mais de 93% (ou 6175 hectares) foram eucaliptos.[6] Esta situação não é sustentável. Não é suposto que uma quarta parte do concelho arda, provocando enormes perdas não humanas ao nível da biodiversidade, redução da qualidade do solo, destruição de valor económico e causando incomensurável sofrimento, e se fique de braços cruzados, nada fazendo para alterar esse paradigma.
Em Mortágua, decidiu-se que o caminho correto era financiar o plantio de mais eucaliptos, servindo a Navigator Company, a ALTRI e a Biond (antiga CELPA) da celulose e da indústria papeleira, com a assinatura de diversos protocolos. A ação concreta do município para enfrentar fenómenos com ligação direta às alterações climáticas e ao aquecimento global foi aliar-se à maior emissora de gases de efeito de estufa (GEE) do país, a Navigator Company. É o completo ‘greenwashing’. Em julho de 2023, António Redondo, CEO da Navigator Company, sugeriu que Portugal continuasse a aumentar a área de eucalipto, de forma a garantir a sustentabilidade da empresa.[7]
O seu legado não é degradante apenas em Portugal. A Navigator Company é um grupo empresarial que vem deixando, desde 2017, um rasto de empobrecimento em Moçambique, em particular na província de Manica. Desde essa altura, com o fantasma do fim da expansão do seu negócio em Portugal (que já vimos que não aconteceu), procurou novos mercados, fixando-se em Moçambique e estabelecendo com os locais uma autêntica relação neocolonial, que já foi denunciada pelas populações em luta. A Portucel Moçambique, da Navigator Company, causou em Manica poluição, perda de biodiversidade, erosão, aumento do risco de falta de água e incêndios florestais, numa região tipicamente sujeita a seca.
Sei que em Mortágua a floresta, aliás, o eucaliptal, é uma parte muito relevante da economia local. Não ignoro isso. Por isso, precisamos de uma floresta livre de monoculturas, que sirva simultaneamente as pessoas e o meio ambiente. Essas alternativas existem. O primeiro passo: rejeitar o ‘lobby’ da celulose. Rejeitar o ‘lobby’ que condena as alternativas à nascença. Rejeitar o ‘lobby’ que olha para a Natureza como algo descartável e não como uma expansão de nós mesmos. É preciso reverter essa lógica. Salvar a floresta é evitar incêndios, é distribuir riqueza de forma mais justa, é biodiversidade.
Quando falo na minha terra refiro-me, às vezes, por piada, a Mortágua como Eucaliptistão. Apesar da (triste) piada, Mortágua tem potencial para estar na linha da frente na construção de uma floresta mais socialmente justa e mais biodiversa. Há, para tal, muito caminho a desbravar.
[1] SIC Notícias. “2017: o ano em que mais território português ardeu”. Disponível em: https://amp.sicnoticias.pt/pais/2017-10-18-2017-o-ano-em-que-mais-territorio-portugues-ardeu.
[2] Lusa. (2018, 14 de junho). “Número de vítimas mortais dos fogos de Outubro de 2017 sobe para 50”. Público. Disponível em: https://www.publico.pt/2018/06/14/sociedade/noticia/numero-de-vitimas-mortais-dos-fogos-de-outubro-de-2017-sobe-para-50-1834310.
[3] NOAA National Centers for Environmental Information. (2024, junho). “Monthly Global Climate Report for May 2024”. Disponível em: https://www.ncei.noaa.gov/access/monitoring/monthly-report/global/202405/supplemental/page-1.
[4] Decreto-Lei n.º 77/2017, de 17 de agosto. Diário da República n.º 158/2017, Série I de 2017-08-17. Lisboa: Assembleia da República. Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/77-2017-108010873.
[5] Figueiredo, Inês André. (2021, 9 de novembro). “Governo prometeu diminuir a área para plantação de eucalipto, mas vai aumentá-la”. Observador. Disponível em: https://observador.pt/2021/11/09/governo-prometeu-diminuir-a-area-para-plantacao-de-eucalipto-mas-vai-aumenta-la/.
[6] Instituto Superior de Agronomia-Erena-Waymotion-2Eco & Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. (2019, janeiro). Capítulo: B – Caraterização biofísica, socioeconómica e dos recursos florestais. Disponível em: https://www.cm-murtosa.pt/cmmurtosa/uploads/document/file/1422/clitoral__cap_b_portal.pdf.
[7] Lusa. (2023, 24 de julho). “Navigator quer mais área para plantação de eucalipto em Portugal”. Observador. Disponível em: https://observador.pt/2023/07/24/navigator-quer-mais-area-para-plantacao-de-eucalipto-em-portugal/.
Pintura de capa por Vincent van Gogh
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