Se há 4 anos dragões e bruxas assombravam a alma de crianças, agora os mais pequenos temem o real – perder alguém especial. O vírus veio pregar sustos maiores do que qualquer monstro. A pandemia mudou o imaginário daqueles que da máscara fizeram rotina; que do ecrã fizeram abraço; que da distância tiveram de construir relação, ou não.
O que poderia falhar? O vislumbre do meio da face distanciou o reconhecimento e a expressão emocional. O isolamento encobriu sorrisos, brincadeiras e festas de aniversário; criaram-se ilhas na relação. A relação que à bom português implica um passou-bem, dois beijinhos, o abraço apertado, o contacto físico que vale mais que mil palavras, transformou-se. E foi na transformação que nasceram aprendizagens para aqueles em que o distanciamento se tornou o normal.
Ser criança é a melhor coisa do mundo, dizem. Sem obrigações e responsabilidades, brincamos, sujamos, sorrimos, amamos (será cenário comum a todas as infâncias?). A verdade é que em 2020, e em dois momentos distintos, as crianças viram-se privadas de brincar livremente na rua, de conviver com os amigos na escola, de aprender numa sala de aula, de distribuir beijinhos, de ser crianças, portanto.
Como explorar o mundo nas paredes de casa? E as aulas aos quadradinhos? Talvez não fosse a forma mais eficaz de aprender, embora tenha sido o possível, e na capacidade de adaptação, o ser humano está sempre a surpreender.
É no brincar que estimulamos a criatividade e a imaginação (e quem não gosta de brincar em castelos de vez em quando?), desenvolvemos a atenção, o raciocínio, a linguagem. O brincar pode e deve ser social, no aprender a partilhar, a comunicar, a cooperar e a relacionar.
Na relação com o outro construímos a nossa imagem, a nossa autoestima, a nossa autonomia. Sim, porque a dependência de dois anos na presença constante dos pais é um cordão umbilical difícil de cortar. Portanto, a relação, que se tornou palavra temida em confinamento, pode ter ficado fragilizada.
Mas passaram quatro anos, dizem também. Será que a COVID-19 é efetivamente o vírus-papão que a geração pandemia deve ainda temer? Vamos lá a questões concretas, então. Há sinais emocionais que surgem hoje e que remontam a máscaras passadas: o medo de perder quem mais amam, os pesadelos com a morte, a ansiedade de não estar no controlo das coisas, as possíveis dificuldades na interação com os pares, a agitação na separação dos pais, e dificuldades de aprendizagem que derivam da falta de estimulação.
Há crianças na escola que provavelmente precisam da oportunidade de brincar que lhes foi retirada no momento do ensino pré-escolar. Em muitos casos, as emoções precisam também de desconfinar. Dois dedos de conversa sobre sentimentos e emoções com as nossas crianças são fundamentais.
Voltando ao bicho-papão, os medos são saudáveis, mas não podem permanecer no escuro. Colocá-los em cima da mesa é importante, sem repreensões e julgamentos, sem risos ou ironias. Desse lado, há alguém que nunca sentiu medo? Partilhar situações em que já o sentimos e como o gerimos pode ajudar a normalizar e a compreender que há forma de superar. A arte e o humor, o desenhar ou construir uma história pode ajudar a perspetivar.
O mundo mudou. Nós mudámos. Os bichos-papões mudaram. A necessidade de afeto, contacto, relação, abraço, amor e socialização, essa dificilmente mudará!
Pintura de capa por John George Brown
Partilha este artigo:
Deixe um comentário