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Queria ter nascido com a calma das plantas, que não desesperam por dar fruto. Ter a liberdade de ver os dias passarem, sem constantemente ser atormentada pelo TIC TAC dos ponteiros do relógio. Poucos ou nenhuns são aqueles que têm esse luxo do rien faire, da contemplação e do pensamento. Enquanto muitos dos meus colegas herdavam a capacidade da calma e da reflexão, usufruíam dos dias longos e intermináveis de praia e das viagens ao estrangeiro; os meus pais, com o pouco que tinham e me podiam oferecer, trouxeram-me ao mundo com as unhas desgastadas da terra. Já nasci com as costas encurvadas do meu avô, os braços cansados da minha avó, o stress incurável da minha mãe, a cabeça que não se calava à noite com contas do meu pai.

“Parar é morrer”, lá me diziam ao mínimo sinal de cansaço, agarrando-me pelos braços e levantando-me de onde me encontrava parada. “Parar é morrer”, lá me diziam quando me queixava da necessidade de ter atividades extra-curriculares.

Já não me bastavam as malas à beira da rutura com livros e cadernos, livros de exercícios e dicionários, estojos grávidos de canetas, e as pastas recheadas de trabalhos por terminar. Ainda faltavam as aulas de inglês, “porque saber só português é como ter uma coleira na garganta, que limita a nossa forma de expressar com os outros”, as aulas de karaté, “pois brincar no recreio e nas aulas de educação física, não abafam as possibilidades dos ataques de asma à espreita”. Para nem falar das aulas de guitarra, do ballet, das explicações de matemática, das aulas de natação e de teatro. “Parar é morrer”, diziam enquanto me arrancavam os cobertores do corpo, uma vez que o dia começa de manhã e não às 11 horas, quando metade deste já lá tinha ido.

Quando se é pobre, explicou-me a minha avó, assim que pude compreender as maquinações do mundo dos adultos, tem que se trabalhar muito; não se pode parar. Às vezes não percebia porque insistia em ter estas conversas comigo. Mal eu sabia contar como deve ser e a tabuada do 7 era difícil que se fartava… Que sabia eu de trabalhar e de ser pobre? Mas ela lá continuava naquela reza estranha, e eu, inconscientemente, interiorizava-a. Afinal, eu conhecia-a bem, era-me familiar, fazia como que parte de mim, como um órgão que partilhava comigo o dia de aniversário.

Todos os dias, ligavam-me à ficha. Com confusão, por vezes com um certo espanto, curiosidade e talvez medo – como se de um animal exótico se tratasse – eu observava a minha mãe em casa. As minhas pernas balançavam para a frente e para trás enquanto o jantar vagarosamente arrefecia, e a minha mãe ora corria para a frente, ora para trás. Aquecia-me o jantar e ia tomar banho; metia-se a apanhar roupa enquanto o arroz para o dia seguinte cozia; dobrava roupa e falava ao telefone com as colegas do trabalho – amanhã vai ser um dia de muita confusão, temos que nos organizar bem – lá elas falavam. Andava sempre a correr. Achei, durante muito anos, que a minha mãe não sabia andar, nem caminhar, nem arrastar os pés como tantas vezes ela me ralhava por fazer. Andava sempre em passo de marcha ou de maratona. Por vezes, parecia que o chão ia perder o verniz com o quanto ela andava. “Parar é morrer”, repetia ela para si em silêncio, esquecendo-se de mim no zunzum das tarefas.

Mesmo após os sustos e as lições, os anos de cansaço e de stress que lhe adensaram as rugas da cara e lhe esbranquiçaram o cabelo, a mesma frase persegue-a. Nem o terror do AVC, das dores de cabeça infernais, e dos comprimidos para a hipertensão, a conseguiram acalmar. Não há arrependimentos, e certamente, orgulhosamente, ela dirá que faria tudo outra vez porque “parar é morrer”. Parar seria esperar pela morte, sentada no sofá a ver os anos passarem, só ciente deles pelas festas de ano novo na TV e pelo envelhecimento do Cristiano Ronaldo. Eu sei-o bem. E sei que pedir que aceite o cansaço é como dar-lhe uma sentença de morte.

Vi-o no meu avô, como a ameaça da reforma quase acabou com ele aos 70 anos. A trabalhar desde os 12 no campo, o que era a vida dele senão o trabalho? Que vida era essa que os outros tinham, que não acordavam às 5h da manhã para passar a ponte sobre o Tejo? Que vida era essa de poder ir de férias para o estrangeiro, Algarve ou uma região fronteiriça de Espanha? Que vida era essa estar a semana em casa, quando para ele de segunda a sexta era pegar no carro e ir trabalhar para algum sítio longínquo, por que tinha de ser? Que luxo era esse, usufruir do tempo livre? E que estranha doença era esta ter depressão por não trabalhar? A primeira aventura do meu avô depois de se reformar foi comer um gelado artesanal.

Na minha família, em que poucos somos e que pouco temos, trabalhar é a única herança que se pode deixar. O valor do trabalhar, a reza do “parar é morrer”, o conforto do stress, o consolo do cansaço, a correria, o medo de estar atrasado, a maldição de “engolir sapos” e do “tem que ser”. Aprendi que quando nada se tem, nunca há trabalho a mais e há sempre trabalho a menos. Tem que se trabalhar sempre mais para ter aquelas viagens ao estrangeiro que, aos nossos olhos, são o Porto ou o Algarve, e com sorte, num ano de grandes poupanças, Sevilha. Aquele excedente que fica, guarda-se para no ano seguinte se conseguir comprar uma máquina de lavar roupa. E ainda, apesar disto tudo, no papel da escola e nas finanças, na entrega do IRS, o título que nos dão é de “classe média”. De que vale tanto trabalhar, se somos como Sísifo?

Agora estranham que apesar da minha idade, jovem e cheia de sonhos, o que me persegue de noite não são as ambições, mas a compra de uma casa, a procura de um trabalho que se adeque à minha carreira (ou àquela que aspiro), o reembolso das propinas, o desinvestimento na cultura, a dificuldade em arranjar carro e a ausência de transportes públicos; e como assim o azeite está a 7 euros o litro? Estranham as ansiedades de tentar arranjar experiência no mercado de trabalho quando até para servir às mesas ali na esquina, no Café da Maria, se pedem 4 a 5 anos de experiência. Disseram-me para estudar, que investir numa licenciatura, mestrado, pós-graduação e doutoramento era certo para arranjar um bom trabalho. Devo fazer ambos: estudo e trabalho, trabalho e estudo? Estranham as depressões, o sentimento de vergonha de ser o primeiro com uma licenciatura e trabalhar na caixa do supermercado porque é isso que há, e como tal, tem de ser. “Pode ser que chegue a chefe”, lá eles conspiram.

“Quando eu tinha a tua idade, ainda dava para aproveitar a vida” – diziam. Na minha terra, ninguém tinha ansiedades e depressões, complexos e descomplexos; trabalhava-se, ganhava-se, poupava-se e a vida fazia-se – tantas as vezes ouvi eu.

Porém, as noites continuam passadas em branco, cheias de cenários hipotéticos e medos de desiludir, cada teste feito na licenciatura ou no mestrado carregado de perguntas: será mesmo isto o que quero? Não valia mais ter ido para medicina? Ou para engenharia? Ou até para computadores?

A idade pouco pesa, mas o cansaço já é muito. As costas e os ombros sucumbem com o peso dos orgulhos daqueles que vieram antes de nós, as mãos ganham rugas de tantas vezes segurar sonhos perdidos antes de serem esmagados pela força do trabalho, os cabelos esbranquiçam-se com o stress de o dinheiro ser pouco e as horas de trabalho muitas, as pernas quebram de tantos estágios remunerados ter que fazer porque dão “experiência” – mas não aquela experiência que, com nome fino, apelidamos cunhas – e os braços eventualmente desistem de empurrar a pedra até ao cimo da montanha. “Parar é morrer” e trabalhar não é viver, já não é um elemento da equação de condições de vida, portanto fazer o quê? Até sonhar tem um prazo de validade que desvanece antes de ganhar forma.

Outros virão depois de mim, e o medo cresce enquanto mastigo este pensamento, poderei eu fazer-lhes isto também? Poderei eu repetir o ciclo vicioso, a reza do trabalho, a persistência do stress e da frustração de não ter chegado ao cimo com a pedra? Só isso ficará para eles quando as minhas ambições e orgulhos sobrarem. Quanto menos peso conseguir tirar dos ramos da árvore genealógica, mais para eles deixarei para carregar.

A angústia é hereditária, silenciosa, perigosa, tal como o medo de ficar parado a meio da pirâmide sócio-económica.  

Joana Cardoso

Um comentário a “Herança degenerativa do trabalho”

  1. Avatar de Diana

    Um manifesto de todes aqueles que dedicaram toda uma vida para “alcançar mais” do que quem chegou antes de si. Daqueles que tiveram de traduzir tudo de um mundo para outro, mas que nem se atreveriam a traduzir a palavra “cansaço”. Já é tempo de a academia entender que há estudantes e jovens que não se podem dar ao “luxo” de sentirem exaustão, tristeza, medo – tempo de uma reforma no ensino.
    Uma mensagem que inquieta, mas que também apazigua – “não estão sozinhes”.
    Os meus sinceros parabéns.

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