A sorte de ter nascido arrebata-me. Respirar sem me aperceber e ter tudo em mim a funcionar como é suposto, é uma lotaria que ganhei e que me deixa, tantas vezes, atordoada, insuflando-me o corpo de gratidão. Gratidão: aprendi a detestar esta palavra pela quantidade exagerada de vezes que a vejo empregada pela internet de forma banal e leve, associada a grupos de pessoas que acreditam, em demasia, que os signos nos definem e que Mercúrio tem a capacidade de nos avariar o telemóvel quando se move mais lentamente. A verdade é que é um sentimento que, tantas vezes, me deixa as pernas bambas, o olhar baixo e uma qualquer frustração de não saber o que fazer com ele. Olho em volta e não consigo evitar pensar no que terei feito para merecer esta sorte toda. Sendo uma pessoa com extrema necessidade de ter tudo sob controle, a certeza de que foi tudo um acaso que se alinhou em meu favor, deixa-me surpreendentemente aflita. A noção de que bastava ter nascido noutro lugar do mundo para que tudo na minha vida fosse mais povoado de dor e provação, aumenta em mim a sensação de que devia fazer algo que honrasse a minha sorte. Não sei o quê, não faço ideia e isso desestabiliza-me.
Numa altura em que me tenho sentido inundada por catástrofes alheias, este sentimento de não pertença ao meu próprio privilégio teima em tirar-me horas de sono. Sentir que não fiz absolutamente nada para receber a sorte que tenho, por viver num país seguro e em paz, é algo que exponencia a empatia que sinto por quem teve um fado distinto. O ultraje de ver um povo a ser dizimado cruelmente em Gaza, pessoas a lutar pela sobrevivência sem sucesso e eu, presa no trânsito a bufar porque tenho pressa de chegar não sei onde. O constrangimento de me inquietar por não saber que livro ler a seguir, enquanto mais de meio milhão de pessoas ficaram com tudo debaixo de água, no Rio Grande do Sul. A vergonha que sinto quando me apercebo que passo os dias a refilar de coisas e coisinhas, quando na Ucrânia, na Síria, na Nigéria, no Sudão, em Mianmar e em tantos outros pontos do mundo, pessoas se veem no meio de tanques de guerra, de tiros e de mortos.
A mim, Deus nunca me enganou. Nunca o vi, nunca o senti. Acima de tudo, nunca acreditei que existisse uma entidade que nos exigisse vassalagem sem nos dar em troca a mínima proteção. À medida que fui crescendo, essa ideia só se cimentou, ganhou força e se agigantou. Os religiosos que me perdoem, mas recuso-me a acreditar que exista algo além do caos a reger-nos. A ideia de haver algo ou alguém com todo o poder do mundo para evitar ou fazer seja o que for e que, mesmo assim, permita que o Inferno insurja tão recorrentemente na Terra, não é alguém que eu queira respeitar. Muito menos amar.
Não se enganem com este meu ateísmo extremo: daria quase tudo para ter fé em alguma coisa. Mesmo numa bolha de sorte gratuita, lidar com os fantasmas do mundo sem acreditar em nada para além do acaso, do efeito borboleta, da coincidência, da sorte e do azar, é algo que não recomendo. É viver num quarto fechado, sem janelas e de paredes lisas, não ter portas nem sítio para ir. Viver sem fé é tantas vezes desesperante, que dou por mim a invejar quem acredita que as rezas e preces são uma espécie de ‘boomerang’ que regressa com esperança e resolução. Ter fé é ter uma mão amiga imaginária a todo o momento, um cobertor quentinho, com cheiro a lavado, que se pousa nos ombros e traz consigo a promessa de que tudo irá ficar bem. Acreditar que quem se foi está num sítio melhor à nossa espera. Não há como não invejar isto. Não há como não querer a capacidade que quem tem fé tem de encontrar razões para justificar o acontecimento de coisas dolorosas: ‘’foi assim porque Deus quis’’ e tudo é aceite de coração aberto. Eu invejo, juro que invejo. No entanto, não evito sentir-me ultrajada por ver as pazes que as pessoas fazem com coisas que não são suposto acontecer. Não consigo evitar o apontar de dedo automático a esse ser todo-poderoso. Quem é que Ele pensa que é para nos roubar a paz, as pessoas e o futuro? Não é ninguém. Não existe. Não tenho ninguém em quem colocar a minha raiva e não sei se isso me aflige ou tranquiliza.
Num mundo podre e moribundo, ter saúde e sorte é uma afronta. Sinto-o todos os dias e não sei como o contrariar. Vejo borboletas a passar por mim e pergunto-me se, de facto, o seu bater de asas provocará uma tempestade algures. Vejo-lhes as cores, que parecem pintadas e pergunto-me se, de facto, existe alguém que as tenha inventado. Olho em volta e, apesar de tudo, vejo beleza em toda a parte, mas não sem antes me relembrar dos mortos e dos famintos, dos que sentem dor a cada movimento ou a cada dia de ausência de quem amam e que se foi. De repente, a beleza que era certa torna-se obsoleta e eu não sei no que acreditar de novo. Por mais que quisesse crer em mais do que aquilo que existe, é tudo bonito, injusto e incoerente demais para ter sido criado por alguém. Deus não existe.
Pintura de capa por Peter Paul Rubens
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