Tempo de leitura: 5 minutos

Quando tocar alguém, nunca toque só um corpo. Quer dizer, não esqueça que toca uma pessoa e que neste corpo está toda a memória da sua existência. E, mais profundamente ainda, quando tocar um corpo, lembre-se de que toca um Sopro, que este Sopro é o sopro de uma pessoa com os seus entraves e dificuldades e, também, é o grande Sopro do universo. Assim, quando tocar um corpo, lembre-se de que toca um Templo.

— Jean-Yves Leloup

Durante a jornada numa estrada tumultuosa da especialização em cuidados paliativos, tive o privilégio de privar com um grupo excelente de colegas e professores. Se eu precisasse de resumir o que até então aprendi, talvez este excerto fosse a melhor descrição. Desde 2006 que tenho a honra de trabalhar na área do envelhecimento. Ao longo destes 18 anos, estive intimamente ligada à morte e, sem perceber, a lidar diariamente com o processo de morrer. Este foi um dos grandes ensinamentos desse percurso: morrer é um processo, e a morte, como diria a Dra. Ana Cláudia Antunes, “é um dia que vale a pena viver”.

Durante todos esses anos, percebi que cuidar de alguém é a maior vitória perante a doença e é um excelente motivo para encarar a vida doutra forma. Mesmo lidando diariamente com idosos, cuja expectativa de vida é limitada, o confronto com a debilidade, a decadência, a perda de autonomia, a demência e a morte ainda despertam em mim sentimentos de angústia, revolta, tristeza e frustração. Lidero equipas de profissionais, acompanho idosos, conforto famílias… Lido com médicos obstinados por mais exames, por mais tratamentos, por mais intervenções, mesmo quando o idoso está no leito da morte, e lido com enfermeiros que seguem protocolos, realizam procedimentos repetitivos, enquanto o tempo da pessoa escasseia. Cada vez mais entendo que cuidar e tratar são conceitos distintos, pois tratar requer habilidades técnicas, enquanto cuidar envolve uma perspetiva holística, uma abordagem mais humana.

Muitas vezes questiono-me se forneci todos os cuidados necessários, se fiz tudo o que deveria, se poderia ter feito mais. Olho para o meu interior e pergunto-me até onde estaria disposta a ir se fosse eu, os meus pais, o meu marido, os meus filhos… É isso que muitos profissionais fazem quando se deparam com o sofrimento alheio, projetam essas emoções em si mesmos e nos seus entes queridos. Somos assombrados pelo medo da perda, do sofrimento, da finitude, do desconhecido.

Ao longo da vida, muitas vezes ouvimos, mas não escutamos; insistimos em falar quando alguém só quer o nosso silêncio, projetamos nos outros a esperança de que sejam reflexos nossos. Recorremos à fé como consolo, à esperança de sermos verdadeiramente ouvidos e as nossas preces atendidas. Muitas vezes conectamo-nos no silêncio, no toque, no sorriso, permitindo um reencontro com o nosso “eu” interior. Ao longo da vida, usamos máscaras para nos proteger, para encenar uma vida confiante, mas, no fundo, somos vulneráveis, temerosos e inseguros. Quando achamos que a máscara está firme, talvez seja o momento de deixá-la cair e permitir que alguém nos ajude a suportar o peso que ela carrega. Nesta fase da vida, onde a doença persiste e o processo de morrer parece aproximar-se, as nossas habilidades emocionais são postas à prova.

Confrontados com a dependência, muitos rejeitam os sinais de envelhecimento, negligenciando a pessoa que habita o corpo até ao último momento de vida. Existe uma dualidade entre perder um ente querido e não aceitar a doença. Convivemos com diversos tipos de luto, seja pela morte física ou pela perda da identidade da pessoa ainda em vida. É importante estar presente para acompanhar, demonstrar apoio, evitar procedimentos desnecessários que desrespeitam a dignidade do indivíduo no seu processo de morrer. O bem-estar físico, emocional, familiar, social e espiritual devem estar em equilíbrio.

É fundamental abordar o processo de morte, planear e respeitar os desejos da pessoa idosa e das suas famílias, num diálogo simples, aberto e natural. Apesar de muitos não terem um testamento vital formalizado, é importante discutir os seus desejos e medos. Devemos aprender a perguntar sobre o processo de morrer, a planear e respeitar as vontades de cada um. A vida traz-nos surpresas, e a morte é uma delas.

Além das habilidades técnicas, os cuidados paliativos ensinaram-me a viver até à morte. Permitiram-me discutir o meu próprio processo de morrer com a minha família, sobre as decisões importantes que não quero delegar injustamente. Mas ainda não consigo perguntar aos meus entes queridos sobre os seus desejos para o processo de morrer. Talvez porque ainda estou em crescimento, a aprender. Resta-me a esperança de que o amor compartilhado nos momentos vividos seja suficiente para me reconstruir após a dor do luto.

Encerro com duas citações que me sustentam: “De repente, você desapareceu de todas as vidas que marcou.”; “Morremos antes da morte quando nos abandonamos. Morremos depois da morte quando nos esquecem.”

Partilha este artigo:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.