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Os meus pais educaram-me a mim e à minha irmã de forma muito diferente daquela que foram educados e que viam os seus pares a educar. E eu percebo agora que isso não é fácil, nada fácil. Perceber os erros que foram cometidos na nossa educação e escolher ativamente não os cometer com os nossos filhos é desafiante e, muitas vezes, um caminho solitário. Tal como tudo aquilo que escolhemos fazer de diferente da maioria.

Quando era mais nova não percebia a sorte que tinha. Ainda tenho, mas agora isso é claro para mim. Nunca fui a melhor aluna da turma, ou a mais atlética, ou a mais bonita, mas isso também nunca foi um problema: os meus pais não queriam que eu fosse a melhor, queriam sim que eu fosse feliz, que gostasse de mim e da vida. Educaram-me para confiar em mim, nas minhas capacidades e na minha intuição.

Quando terminei o secundário e decidi parar um ano, eles confiaram como todos os pais devem confiar nos seus filhos: de olhos fechados e braços abertos. Sempre me deram liberdade para tentar, para ir, para errar. Com a certeza que teria sempre o seu apoio para curar as feridas caso algo não corresse bem.

E assim fui fazer o meu ‘gap year’. Muitos pais de amigas e colegas na altura questionaram a minha decisão, de uma forma que os meus próprios pais nunca questionaram. Foi engraçado porque, pela primeira vez, percebi que isto não era o normal; o mais comum era não deixarem os seus filhos fazerem o mesmo que eu. Não pretendo aqui referir as questões económicas que neste contexto surgem, não são essas que estão em causa. Até porque a minha família tinha menos possibilidades financeiras do que muitas das que me lembro enquanto escrevo.

Quando decidi que queria ir estudar Psicologia, no ano seguinte, a resposta foi a mesma: vai! Não sabiam bem o que era ou o que fazia um psicólogo, e eu também não. Mas a área fascinava-me e queria descobrir mais. Fui com a certeza que, caso não gostasse, me vinha embora com a mesma rapidez. Mas fiquei, porque adorei. Mais uma vez, nunca questionaram a minha decisão. E olhem que até me tornei uma boa aluna, daquelas que, além das boas notas, também tem um percurso extracurricular. Quanto aos meus pais, continuaram a celebrar as minhas vitórias e a consolar-me nas derrotas. Foi também na faculdade que comecei a contactar com pessoas com histórias de vida muito diferentes da minha. Mesmo muito diferentes. Percebi, outra vez, que tinha muita sorte.

Nunca fui educada para ser “mulher”, naquele sentido limitador que todos nós conhecemos, a mim, ensinaram-me a ser uma pessoa independente, a pensar e fazer por mim. Nunca vi os meus sonhos limitados, seja porque motivo fosse. Nunca me vi obrigada a corresponder a expetativas irrealistas sobre quem eu deveria ser ou o que fazer. Nunca senti necessidade de ser uma pessoa que não era, pelo menos não com os meus pais. Sempre vi a minha individualidade ser respeitada e estimulada. A mim ensinaram-me a ser livre e genuína!

Enquanto as minhas amigas da escola se escondiam e mentiam aos pais, porque estes não as deixavam ser e fazer, eu contava as fofocas todas à minha mãe. Aliás, as minhas amigas procuravam a minha mãe para pedir conselhos, quando não podiam ou sentiam que não seria seguro recorrer às suas. Já o meu pai era o senhor porreiro que dava boleia a toda a gente para todo o lado, sem fazer muitas perguntas, e que estava sempre bem-disposto.

Quero contar-vos um segredo: os filhos dos pais autoritários não são mais certinhos e bonzinhos. Ganham mais experiência nas artes de mentir e manipular, isso sim. São também, frequentemente, menos confiantes e acabam por desenvolver uma autoestima bastante precária, o que terá consequências negativas no futuro. As minhas colegas não deixavam de fazer as coisas, pelo contrário; os pais delas é que não faziam ideia de nada das suas vidas, estavam iludidos com as vidas dos filhos que julgavam ter, mas que nunca existiram além da imagem por eles projetada.

Atenção que os meus pais são seres humanos como todos os outros e, por isso, não são perfeitos. Também discutimos, gritamos, discordamos. Mas mais depressa isso acontece por insignificâncias do dia-a-dia, ou porque somos demasiado parecidos, do que por termos valores e crenças totalmente diferentes, ou porque as nossas perspetivas de vida em nada se tocam. Eles têm muitos defeitos, não agem sempre da forma mais correta, nem dizem sempre a coisa certa no momento ideal. Mesmo assim, eu não os trocava por nada deste mundo.

Tenho agora 24 anos e não sei mentir, sinto-me super desconfortável sempre que o “tenho” de fazer. Ainda procuro os conselhos da mãe e as boleias do pai, que continuam sempre disponíveis. Também não sei ficar calada, porque me disseram que, se tenho voz, é para a usar. Mesmo quando não falo com palavras, todo o meu corpo comunica por mim. Sou demasiado expressiva, demasiado eu – e que bom que assim é.

Os meus pais conseguiram ainda algo incrível: filhas que gostam deles, que não querem fugir, que não sentem necessidade de ir para longe para poderem viver a sua verdade livremente. Eu gosto de viver em casa deles, que é também a minha. Lá sinto-me segura, sinto-me no meu espaço. Quantas pessoas conheço que gostariam de poder dizer o mesmo.

Um dia, vou retribuir-lhes com a mesma consideração que por mim tiveram. Quando a hora chegar, cuidarei dos meus pais, não por dever, não porque a sociedade me obriga, mas porque quero. Porque gosto genuinamente deles como pessoas. Porque lhes admiro a coragem, a ousadia. Vemos muitas vezes notícias de idosos sozinhos, abandonados pela família. Questiono-me quem terão sido essas pessoas como pais, como irmãos, primos, sobrinhos. Que educação terão recebido? Alguma vez terão rompido com a conduta educacional que receberam ao ponto de não a perpetuar aos seus descendentes?

Sou uma privilegiada naquilo que mais importa. E gostava de vos desejar o mesmo. Gostava que a minha geração aprendesse a quebrar os ciclos, os padrões geracionais de educações pobres e podres. Gostava que pudéssemos criar crianças com mais amor no coração, mais consciência. Crianças essas que se vão transformar em adultos e, quiçá, também em pais mais competentes, que não ficarão a apodrecer num lar sem ninguém no mundo que goste deles.

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