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Necessitei da motivação extra para escrever um artigo, coisa que já não fazia há algum tempo. Agradeço a João Saraiva por essa motivação, ao escrever o seu artigo “Não pode.” aqui para a Reconhecer o Padrão. É um artigo com o qual discordo em vários argumentos, às vezes multiplamente por parágrafo.

Comecemos pelas coisas das quais penso que concordemos mais facilmente: o ódio é feio. Por agora tudo bem. Agora vamos para uma coisa em que não se concordou, no passado, com tanta vitalidade, mas, atualmente, é mais fácil: a liberdade de expressão é crucial ao florescimento da espécie humana. Duvido que João Saraiva fosse discordar aqui. Mas, na eventualidade de que talvez o conceito de liberdade de expressão esteja a impedir a concórdia, podemos reger-nos pela definição do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras.” Por agora parece fácil tomar decisões e dar “passou bens” a estas premissas, mas daqui a alguns parágrafos isso deixa de acontecer.

Permanecendo na concórdia, parabenizo o João Saraiva por ter desmantelado a afirmação de André Ventura relativamente ao trabalho do povo turco. Acrescentaria apenas que não só a nível de horas trabalhadas os turcos são melhores que nós, mas também a nível de produtividade e riqueza gerada por trabalhador (vide https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=PDBI_I4#, https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/afinal-ventura-tinha-razao-portugal-tem-maior-produtividade-por-trabalhador-do-que-a-turquia/ e https://rr.sapo.pt/especial/pais/2024/05/17/povo-turco-nao-e-trabalhador-turquia-e-mais-produtiva-e-trabalha-mais-horas-que-portugal/378787/). Os meus parabéns e a nossa concórdia terminam, porém, por aqui. 

No terceiro parágrafo do seu artigo, João Saraiva refere que o papel do Presidente da Assembleia da República (PAR) envolve advertir um deputado e retirar-lhe a palavra quando o seu discurso é injurioso ou ofensivo. Esta premissa é factual (vide artigo 89.º do Regimento da Assembleia da República). Reparem, no entanto, que não está descrita a índole dessa injúria. É na subjetividade da lei que os debates começam. O PAR argumentou recentemente (vide https://www.parlamento.pt/sites/PARXVIL/Documents/a-liberdade-de-expressao-uma-super-liberdade-de-protecao-maxima-e-de-restricao-minima.pdf) que essa injúria apenas se debruça sobre ataques/ameaças/chantagens entre deputados e não sobre o discurso político, mesmo que esse inclua uma opinião infundada como a que André Ventura proferiu. No entanto, João Saraiva refere, erradamente, que o Regimento da Assembleia da República está lá para que a visão do PAR seja inútil perante o cumprimento deste. Não é verdade, diferentes PAR têm diferentes posições dentro do regimento (vide https://paginaum.pt/2024/05/19/a-liberdade-de-expressao-no-parlamento/#_edn12 para uma breve comparação entre os dois últimos PAR). Assim, sendo este artigo 89.º tão vago no objeto da injúria, segue-se a premissa de que o PAR tem como objetivo zelar pelo bom funcionamento dos trabalhos da Assembleia, que são inteiramente relacionados com a liberdade de expressão dos deputados.

Mais uma vez, no quarto parágrafo, João Saraiva cita a Constituição da República Portuguesa para apelar às consequências legais para quem profere discurso de ódio, mas esquece-se de um artigo que vai contra a sua opinião quando estamos a falar do hemiciclo. Reparem, tamanha importância tem a liberdade dos deputados que o n.º1 do artigo 157.º da Constituição refere que “Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções” (https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-aprovacao-constituicao/1976-34520775-49545675). Este artigo segue a linha de pensamento de que no Parlamento é necessária liberdade de pensar e expressar de modo que a representação do povo seja o mais legítima possível. Reconheço que esta é a minha interpretação da lei e não a interpretação final, no entanto, assim também concordaram a maioria dos partidos na conferência de líderes (vide https://expresso.pt/politica/2024-05-22-aguiar-branco-sugere-a-criacao-de-voto-de-rejeicao-contra-discursos-de-odio-e8ad0a30). Resumindo, temos então um PAR que não só não censurou a liberdade de expressão como, dada a resistência no Parlamento, remeteu a resolução do problema para uma conferência de líderes de modo a clarificar e a atingir consenso entre os partidos sobre como reger o futuro da Assembleia. Mais democrático que isto parece-me impossível.

Por fim, este artigo de João Saraiva menciona o conceito de discurso de ódio e a sua criminalização. Isto, no entanto, é novamente um ligeiro (mas importantíssimo) erro técnico. O discurso de ódio não é lei. É um conceito de ‘soft law’, ainda sem qualquer consequência legal associada dado que não tem definição concreta (vide https://tre.tribunais.org.pt/fileadmin/user_upload/docs/criminal/LIBERDADE_EXPRESSAO_DISCURSO_ODIO.pdf e https://www.revistaminerva.pt/duelo-de-titas-liberdade-de-expressao-vs-discurso-de-odio-o-tratamento-pelo-tribunal-europeu-dos-direitos-humanos/#post-9753-_Toc75624835). O próprio Diário da República refere o discurso de ódio entre aspas e remete-o para o famoso artigo 240.º que aborda a incitação ao ódio e violência (vide https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/crime-incitamento-ao-odio-a-violencia). Aliás, nem sequer sobre difamação e injúria existe consenso a nível europeu (vide https://ipi.media/out-of-balance/), quanto mais sobre discurso de ódio.

Assim, como referi ao longo deste artigo, a nossa Constituição permite e, a meu ver, incentiva a decisão de Aguiar-Branco. Não se trata de darmos o foco à discriminação e de a designarmos como jogo limpo no hemiciclo, trata-se de não a censurarmos e de a contra-argumentarmos. André Ventura disse uma idiotice infundada e qualquer deputado poderia ter perdido cinco minutos no Google a encontrar provas para o desmentir em pleno Parlamento. Este cenário é preferível à censura que o antigo PAR nos habituou e que permitiu que André Ventura se tornasse um coitadinho e uma vítima do sistema pelas vezes que era censurado.

Termino da mesma forma que João Saraiva terminou, também citando Karl Popper, mas umas frases antes das referenciadas pelo João: “Enquanto conseguirmos contrapô-los [aos intolerantes] com argumentação racional e mantê-los sob controlo na opinião pública, supressão certamente não seria sábia.” (tradução liberal de “The open society and its enemies”, pág 226).

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