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Para André Ventura, os turcos são pouco trabalhadores, ainda que a Turquia seja o 13º país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) onde a população mais trabalha. Entretanto, esta afirmação do líder do Chega não deve chocar o país, pois sabemos bem o que ele pensa sobre as pessoas de outras etnias, especialmente, quando estas não partilham o seu tom de pele. O que choca, no entanto, a quem tem um pingo de noção e sensatez, é o facto de que, para José Pedro Aguiar-Branco, um deputado inferiorizar um povo de diferente etnia, em pleno hemiciclo, é liberdade de expressão. Deixem-me ser claro: não é.

Assim que André Ventura optou por ofender todo o povo turco, Aguiar-Branco teria estado à altura do papel de presidente do hemiciclo se tivesse advertido o deputado sobre o que acabara de dizer e, fosse o caso, se lhe tivesse, consequentemente, retirado a palavra. Surpreende-me que um notável jurista como José Pedro Aguiar-Branco desrespeite o bom funcionamento do hemiciclo, justificando-o com base naquilo que acha, e não podia estar mais errado, claramente.

Recordemo-nos de que, em março, Aguiar-Branco não foi eleito para a gerência de um estabelecimento qualquer onde tudo pode ser dito e falado com pouca ou nenhuma repercussão. Foi, de facto, eleito para o cargo de presidente da Assembleia da República, cujas funções respondem a um rigoroso regimento do funcionamento do Parlamento e, claro, à Constituição. Disto tão bem lembrou Alexandra Leitão, líder do grupo parlamentar do PS, dirigindo-se a Aguiar-Branco, ao referir que este mesmo regimento dá poder ao presidente do Parlamento para retirar a palavra a um deputado quando o seu discurso se torna ofensivo ou injurioso. Aguiar-Branco, entretanto, recusa-se e considera-se o grande defensor da liberdade de expressão, porque, no seu entender, um deputado pode ofender quem quiser.

Na verdade, todos podemos tudo. O livre arbítrio está cá. No entanto, da mesma forma que, se alguém roubar um banco ou agredir fisicamente outra pessoa, terá de arcar com as consequências legais, quem pratique o discurso de ódio baseado no racismo e na xenofobia, ou outro tipo de discriminação, deverá ter igualmente um espaço no lugar do réu. Porquê? Porque a Constituição da República Portuguesa assim o dita. Reforço novamente que Aguiar-Branco foi eleito para o mais alto cargo do hemiciclo português. A sua visão das coisas pouco ou nada interessa para o funcionamento do mesmo, quando existem regras, leis, regimentos e uma Constituição a cumprir. O seu dever na posição que ocupa é precisamente fazer com que tudo isto seja cumprido – um dever em que falhou redondamente.

Com esta falha astronómica na sua conduta, Aguiar-Branco permitiu que o discurso de ódio se tornasse debate político justo e democrático, quando é exatamente o oposto. Aguiar-Branco permitiu que na casa da democracia portuguesa sejam normalizados o racismo e a xenofobia, e isto é francamente lamentável, triste e vergonhoso. Além disto, é também preocupante, pelas consequências que pode ter fora de São Bento. Ao autorizar que a discriminação seja jogo limpo no debate político, o presidente do hemiciclo está a dar sinal aos que o veem cá de fora que eles também o podem fazer.

Se um deputado pode dizer que os turcos não trabalham, o que é que proíbe alguém de dizer que os ciganos ou os brasileiros não prestam e querem viver às custas do Estado? O que é que lhes proíbe de chamarem paneleiros aos homossexuais e de opinar que o lugar das mulheres é na cozinha? Segundo José Pedro Aguiar-Branco, absolutamente nada, pois, para si, é liberdade de expressão, dando assim a sua benção ao discurso de ódio.

Nos últimos anos, a extrema-direita tem sido amplamente reconhecida como o grande veículo da discriminação das democracias ocidentais, Portugal incluído, mas também podemos responsabilizar quem defende que a extrema-direita tem o direito à liberdade de expressão e permite que esta monstruosidade continue a ameaçar os valores democráticos e igualitários da sociedade. Muito pouco se tem feito para cumprir a Constituição e barrar quem discriminaria os outros pela sua diferença. Costuma-se dizer que a nossa liberdade acaba quando a dos outros começa, e parece-me a mim que está na hora de responsabilizarmos quem, por palavras ou atos, descarta este direito tão facilmente.

Para isso, temos de começar por cima e podemos iniciar com a demissão de José Pedro Aguiar-Branco. Além de não cumprir corretamente as funções que lhe competem, protegeu um atentado contra a Constituição, mascarando-a de liberdade expressiva. Faça-se o exemplo e mostre-se, de uma vez por todas, que a discriminação nunca é aceitável, seja onde for, quando for, ou contra quem for. Comecemos a seguir Karl Popper [filósofo austríaco que formulou o chamado paradoxo da tolerância] e deixemos, finalmente, de tolerar o intolerável.

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